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de wikipedia e jdact
O
Áugure
«(…)
Frei Giovanni cumpriu sem hesitar a segunda parte da missão que lhe atribuiu o
prior geral. Depois de nossa conversa e de me mostrar a última carta do Áugure,
voltou à sede da ordem e deixou Betânia antes do anoitecer. Torriani havia-lhe
ordenado que voltasse para informá-lo da minha reacção. Queria, principalmente,
saber qual a minha opinião sobre os rumores a respeito de graves anomalias nas
obras de reforma da Santa Maria delle Grazie. O meu assistente devia-lhe
transmitir a minha mensagem, clara e simples: se, finalmente, levassem em
consideração os meus velhos temores, e se somassem a eles, como prováveis, as revelações
do Áugure, havia de localizar esse sujeito em Milão e saber dele, directamente,
o alcance dos projectos secretos que o duque tinha para aquele convento. Haveremos
de examinar, especialmente, os trabalhos de Leonardo da Vinci, insisti com frei
Giovanni. Em Betânia, já temos conhecimento da sua afeição por mascarar ideias heterodoxas
em obras de aparência piedosa. Leonardo trabalhou muitos anos em Florença, manteve
contacto com os descendentes de Cosme, o Velho, e, entre todos os artistas que trabalham
em Santa Maria, é o mais inclinado a partilhar das ideias do Mouro.
Gozzoli
somou a minha outra grande preocupação ao seu relatório para o mestre Torriani:
insisti na necessidade de abrir uma investigação sobre a morte de donna Beatrice. O vaticínio tão preciso do Áugure sugeria a existência de
algum sinistro plano ocultista, talvez idealizado pelo duque Ludovico ou pelos
seus pérfidos assessores, para implantar uma república pagã no coração da
Itália. Embora não fizesse muito sentido que o duque mandasse assassinar a sua
esposa e seu filho nonato, a mente dos adeptos das ciências ocultas discorria
muitas vezes por caminhos imprevisíveis. Não era a primeira vez que ouvia falar
da necessidade de sacrificar uma vítima renomada antes de empreender uma grande
obra. Os antigos, esses bárbaros da Idade do Ouro, faziam isso com frequência. Suponho
que a minha determinação animou Torriani.
O
prior geral avisou o irmão Gozzoli das suas intenções, e na manhã seguinte, com
a geada ainda em Roma, abandonou as suas dependências no convento de Santa
Maria, disposto a acabar definitivamente com aquele problema. Desafiando os
acessos nevados à Cidade Eterna, Torriani subiu de mula até ao quartel de Betânia
e solicitou que eu o recebesse com a maior brevidade. Ainda ignoro que termos empregou
o irmão Gozzoli para informá-lo sobre as minhas ideias, mas era evidente que o havia
impressionado. Eu jamais vira o nosso superior assim: duas bolsas roxas pendiam
verticalmente sob o seu olhar cinza, apagando-o; as suas costas pareciam se
vergar sob o peso de uma responsabilidade soturna, devorando pouco a pouco seu
carácter alegre e afundando
uns
ombros que também languesciam cada vez mais. Torriani, mentor, guia e velho
amigo, consumia o que lhe restava de vida com as marcas da decepção gravadas no
rosto. Contudo, por trás do brilho de seus olhos se denotava uma sensação de
urgência: pode receber um pobre servo de Deus molhado e doente?, disse assim
que me viu no átrio de Betânia. Eu mentiria se jurasse que não me surpreendi ao
encontrá-lo ali tão cedo. Havia subido até ao nosso posto sozinho, sem séquito,
com uma manta sobre o hábito e as sandálias cobertas por peles de coelho. Se o
superior da Ordem de São Domingos abandonava assim a nossa sede e a sua
paróquia e atravessava a cidade em pleno temporal para se encontrar com o responsável
por seu serviço de informação, o assunto devia ser gravíssimo. E, embora o seu rosto
sombrio convidasse a iniciar a conversa o quanto antes, não me atrevi a lhe
perguntar nada. Aguardei até que tirasse os seus andrajos e terminasse a taça
de vinho quente que lhe ofereci». In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013,
Editora Planeta, 2014, ISBN 978-854-220-327-1.
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