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«(…)
Naquela noite de 16 do mês de Nissan de 5761, meu pai,
David Cohen, dirigiu-se às grutas de Qumran e encontrou-me no scriptorium, onde me dedico à minha profissão. É
uma gruta um pouco maior do que as outras, onde se acham, lado a lado, vários
pergaminhos de tamanhos diferentes, assim como rolos sagrados, muitos jarros de
dimensões gigantescas, cacos e pratos partidos. misturados com fragmentos rochosos...,
uma amálgama de objectos antigos numa desordem secular, que eu nunca ousara
perturbar. Havia mais de um ano que não via meu pai. Os seus olhos brilhavam de
emoção. Os seus cabelos escuros eram ainda abundantes, mas a sua testa alta
apresentava-se marcada por rugas, como se fosse um pergaminho onde as letras se
haviam acumulado, com o passar dos anos. Uma, acentuara-se, desde a última vez que eu vira meu pai: lamed, que significa aprender e ensinar. Esta letra, a mais
alta do alfabeto hebraico, a única em que a haste ultrapassa a linha em direcção
ao alto, assemelha-se à escada de Jacob pela qual os anjos sobem e descem, e
que lhes permite estudar e, por outro lado, transmitir os seus ensinamentos.
Não tecera qualquer comentário, mas eu era o seu único filho e, embora
respeitasse o caminho que eu escolhera, levado, em parte, pela força das
circunstâncias dramáticas, e aceitasse a minha opção, por ser esse o meu
percurso de vida, meu pai sofria por o ter deixado. Preferiria que vivesse mais
perto dele, em Jerusalém, apesar de eu haver saído de casa, depois de cumprir o
serviço militar, para ir viver no bairro ultra-ortodoxo de Mea Shearim. E se,
em virtude das circunstâncias, não morasse com ele, ainda assim ser-lhe-ia
menos penoso que eu residisse em Telavive, como qualquer outro israelita moderno,
em vez de me refugiar nas grutas de Qumran. Creio mesmo que meu pai ficaria
mais satisfeito se eu tivesse decidido viver num kibutz, quer
a sul, quer a norte de Israel, ou, melhor dizendo, numa localidade onde pudesse
visitar-me e não naquele refúgio secreto, de difícil acesso, onde levava uma
vida de asceta. Quanto a mim, de tempos a tempos, perguntava-me quando iria
voltar a vê-lo e, por isso, sentia como aquele momento era raro. Sem me
aperceber, as lágrimas afloraram-me aos olhos.
Estou feliz por te ver de novo, exclamou meu pai. A
tua mãe manda-te um beijo. Como está
ela? Está bem. Já a conheces... É uma mulher forte! Eu sentia grande ternura
por minha mãe, mas, desde que me convertera, uma espécie de barreira de
incompreensão erguera-se entre nós. Para ela, que era de nacionalidade russa e
não praticava qualquer religião, eu não passava de um louco, um fanático, por
ter aderido, há dois anos, a uma seita secreta, com rituais estranhos: a dos
essénios. No século II antes do nascimento de Jesus, um grupo de homens retirou-se
para o deserto da Judeia, mais exactamente para um maciço rochoso chamado
Khirbet Qumran, onde construíram um acampamento. Ali estudaram, oraram e se
purificaram pelo baptismo, preparando-se para o fim do mundo. Todavia, o fim do
mundo não chegou e, após a morte de Jesus e a revolta dos judeus, a História
perdeu o rasto daqueles homens. O campo de Khirbet Qumran foi incendiado, abandonado,
e pensou-se que os essénios tivessem sido sacrificados ou deportados pelos
Romanos. Na realidade, refugiaram-se nas grutas mais recônditas do deserto,
onde vivem em segredo e onde continuam, sem
que ninguém o saiba, a orar, a estudar e a copiar os textos antigos e,
sobretudo, a esperar e a prepararem-se para o mundo do futuro.
Então, foi a minha
vez de perguntar, quais são as notícias do exterior? A notícia, corrigiu meu
pai. Foi perpetrado um crime no deserto da Judeia, a poucos quilómetros daqui. Tratou-se, de certa forma, de um sacrifício humano.
Shimon Delam veio procurar-me e pediu-me que falasse contigo, Ary. Quer que tu
te encarregues do caso. Afirma seres o único homem que é, ao mesmo tempo, um
soldado e também um sábio, dado conheceres tão bem as Escrituras. Mas,
repliquei, não sabes que a minha missão é aqui, nas grutas de Qumran? A tua
missão? Que missão?, perguntou meu pai. Ontem, os essénios elegeram-me,
tornaram-me o seu Messias. Eles elegeram-te..., repetiu meu pai, fitando-me com
uma expressão estranha, como se não tivesse ficado surpreendido com aquela revelação.
Julgam que sou o Messias por quem eles esperaram. Os textos dizem: o Messias
revelar-se-á no ano de cinco mil seiscentos e setenta, e será chamado o Leão.
Ora o leão sou eu, é esse o significado do nome que tu mesmo me deste. Então, estás a deixar o teu
trabalho de escriba e a sair das grutas? Sou escriba, detetive. Dizes que os
essénios te elegeram como seu Messias, e isso significa que a tua missão deixa
de se basear na escrita e passa a reger-se pelo combate, na luta do bem contra
o mal. Ora, na guerra travada entre os espíritos da luz e os filhos das trevas,
o teu papel é o de encontrar o assassino e de combatê-lo». In Eliette Abécassis, O Tesouro do Templo, 2001,
tradução de Catarina Lima, Círculo de Leitores, ISBN 972-423-086-4, Editora
Livros do Brasil, Colecção Suores Frios, 2003, ISBN 978-972-382-671-5.
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