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e wikipedia
Junho
de 1871
«Leitor
de bom senso, que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe,
leitor celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou
revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil, que foi para ti que ele
foi escrito, se tens bom senso! E a ideia de te dar assim todos os meses,
enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres e justas, nasceu no dia em que
pudemos descobrir, através da ilusão das aparências, algumas realidades do nosso
tempo. Aproxima-te um pouco de nós, e vê. O País perdeu a inteligência e a
consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A
prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não
seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita.
Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na
honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na
imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão
abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia.
Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o
viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se,
envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína
económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha, A indústria enfraquece.
O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal
como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas
explora o aluguer. A agiotagem explora o juro. De resto a ignorância pesa sobre
o povo como um nevoeiro. O número das escolas só por si é dramático. O
professor tornou-se um empregado de eleições. A população dos campos, arruinada,
vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de ervas,
trabalhando só para o imposto por meio de uma agricultura decadente, leva uma
vida de misérias, entrecortada de penhoras. A intriga política alastra-se por
sobre a sonolência enfastiada do País. Apenas a devoção perturba o silêncio da
opinião, com padre-nossos maquinais.
Não é uma existência, é uma expiação. E a certeza deste rebaixamento invadiu
todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o País está perdido! Ninguém se
ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz?
Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de Norte a Sul, no Estado, na
economia, na moral, o País está desorganizado, e pede-se conhaque! Assim todas
as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na
podridão!
Nós
não quisemos ser cúmplices na indiferença universal. E aqui começamos, sem
azedume e sem cólera, a apontar dia por dia o que poderíamos chamar, o
progresso da decadência. Devíamos fazê-lo com a indignação amarga de
panfletários? Com a serenidade experimental de críticos? Com a jovialidade fina
de humoristas? Não é verdade, leitor de bom senso, que neste momento histórico
só há lugar para o humorismo? Esta decadência tomou-se um hábito, quase um
bem-estar, para muitos uma indústria. Parlamentos, ministérios, eclesiásticos,
políticos, exploradores, estão de pedra e cal na corrupção. O áspero Veillot
não bastaria; Proudhon ou Vacherot seriam insuficientes. Contra este mundo é
necessário ressuscitar as gargalhadas históricas do tempo de Manuel Mendes
Enxúndia. E mais uma vez se põe a galhofa ao serviço da justiça! Achas
imprudente? Achas inútil? Achas irrespeitoso? Preferias que fizéssemos um
jornal político, com todas as suas inépcias e todas as suas calúnias, vasto
logradouro de ideias triviais, que desmaiam de fadiga entre as mãos dos
tipógrafos? Não. Fundaríamos antes um depósito de bichas de sangrar, ou uma
casa de banhos quentes. E se nos tiranizasse excessivamente o astuto demónio da
prosa, então, em honrada companhia de Fernandez de los Rios, ajoujados aos
líricos de Barcelona, cantaríamos, voltados para os lados da Palestina, a pátria, a fé e o amor! E
patentearíamos aquela crença vivida, aquele arranque peninsular, com que outrora se pelejou a batalha
de Aljubarrota, e hoje se fazem caixinhas de obreias!
Aqui
estamos pois diante de ti, mundo oficial, constitucional, burguês, doutrinário
e grave! Não sabemos se a mão que vamos abrir está ou não cheia de verdades.
Sabemos que está cheia de negativas. Não sabemos, talvez, onde se deve ir;
sabemos, decerto, onde se não deve estar. Catão, com Pompeu e com César à
vista, sabia de quem havia de fugir, mas não sabia para onde. Temos esta meia
ciência de Catão. De onde vimos? Para onde vamos? Podemos apenas responder: vimos
de onde vós estais, vamos para onde vós não estiverdes. Nesta jornada, longa ou
curta, vamos sós. Não levamos bandeira, nem clarim. Pelo caminho não leremos a Nação, nem o Almanaque das Cacholetas. Vamos
conversando um pouco, rindo muito. Somos dois simples sapadores às ordens do
senso comum. Por ora, no alto da colina, aparecemos só nós. O grosso do
exército vem atrás. Chama-se a Justiça». In Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre,
volume 1, 1890-1881, As Farpas, Edições Vercial, 2012, ISBN 978-989-700-069-0.
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