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«(…) Disso
não se lembrara ela, mas também não importava. Procurou duas moedas de prata da
sua bolsa e entregou-lhas. Ele sorriu. A generosidade assenta mesmo bem no seu
rosto. Dalila pressionou a figura contra o seu peito e voltou a misturar-se na
multidão. O Santo António teria de ajudá-la. Teria de chamar a atenção de Deus
para ela, antes que a intimidade entre Antero e Leonor crescesse. Ela mesma
cumpriria a sua parte, para começar bastaria que tivesse um pouco de auxílio
divino. Aprenderia com as artimanhas da própria irmã. Dalila olhou em redor.
Ali em frente, aquilo não era uma alfaiataria? A fachada estava coberta de
azulejos e, por cima da porta pendia uma tesoura de bronze. Dalila seguiu em
frente, na direcção da porta. Junto à entrada estava afixada à parede uma folha
de papel. Prócurace venddora! Devrá çaber excrever e fazê contas.
A folha
tinha já um aspecto sujo e envelhecido. Em Alfama, seriam poucos os que
saberiam ler. Entrou na loja e fechou a porta atrás de si. Estava fresco o
ambiente no interior, onde se encontravam expostas peças ao gosto da moda
burguesa: uma casaca de tecido azul-escuro, coletes ingleses de cores claras,
bem como ainda diversos rolos de tecidos de lã. Façam favor…! Dalila olhou em
redor. Não estava ali ninguém? Espreitou para a sala contígua. Aí estavam
pendurados jaquetões verdes e castanhos e capuzes engomados. Cheirava a amido
de batata. A alfaiataria não era o sítio certo para ela fazer compras. Para
conseguir impressionar Antero, precisaria de vestidos de cetim e damasco. Além
disso, um leque pintado e um lenço de peito num tecido transparente, tal como
Leonor os usava. Leonor superava-a no que tocava à escolha de cores e ao modo
de usar os acessórios. Como se colocava um lenço de peito de modo a que este
revelasse mais do que na verdade cobria? Como, munida de um leque, se fingia ir
acidentalmente de encontro a um homem, como se arregalava muito os olhos,
sinalizando assim a consciência da própria culpa? Ela não dominava qualquer
destas habilidades. Jamais lhe ocorriam quaisquer gracejos insinuantes. Olhava
de modo ansioso, mas nunca atrevido. E, no momento decisivo, as saias armadas
deslocavam-se desajeitadamente para onde não deviam e lá ficava ela em desalinho.
Em questões de moda, fora ela desde sempre pouco dotada.
E então
a utilização de pintura no rosto! A pele deveria ser maquilhada de modo a
parecer pálida, para se conseguir um efeito de delicadeza e fragilidade. O
ideal consistia em ter uma pele de aspecto translúcido. Para criar esta
impressão, Leonor mandava desenhar a azul as linhas das veias. Em simultâneo,
porém, deveriam as faces apresentar um vermelho forte, já que um rubor de
aspecto natural era o sinal distintivo das prostitutas e havia que
distanciar-se delas. Restava apenas saber como se conseguia por fim evitar
fazer a figura de uma boneca esborratada de vermelho. Deveria estar relacionado
com a distribuição da cor, com o sítio exacto onde esta era aplicada e com a
quantidade que se usava. Se Antero preferia mulheres que tivessem um aspecto
exterior perfeito, então Dalila jamais o conseguiria conquistar. Essa ideia
tinha no seu pescoço o efeito de um garrote apertado. Esgueirou-se para a sala
contígua e ajoelhou-se a um canto, junto a um cabide com jaquetões pendurados.
Apertou a figura do santo com toda a firmeza que conseguiu reunir. Santo
António, sussurrou, por favor escuta a minha oração. Preciso da tua ajuda!
Dirige a atenção de Deus para o meu coração que sangra! Não é possível que
Antero ame a minha irmã, ela é a mulher errada para ele! Irá desapontá-lo,
sabes isso bem. Ele merece uma melhor. Atrevo-me a ter esperança de ser eu...,
de talvez ser eu..., o seu coração vacilava. Podes fazer com que ele olhe para
mim e me veja como realmente sou? Ainda que eu não tenha qualquer aptidão para
centrar em mim a atenção dos homens. Por favor, ajuda-me, faz com que ele
repare em mim e me..., me ache bem. Que tipo de vestido deverei comprar? Que
vestido lhe agradaria? A porta bateu. Dalila ergueu-se rapidamente. Espreitou
por entre os jaquetões para o espaço principal da loja. O homem magro e seco
que lhe tinha vendido a figura! Trancou a porta de entrada, agindo como se
fosse ele o dono da alfaiataria e como se pretendesse ficar a sós com a pessoa
que o acompanhava, sem serem incomodados. O acompanhante era um homem com o
rosto largo. Que queria a filha do barão de ti? perguntou-lhe o tal homem. Referia-se
a ela. Dalila susteve a respiração». In
Titus Muller, A Jesuíta de Lisboa, 2010, tradução de Paulo Rêgo, Casa das
Letras, 2011, ISBN 978-972-462-047-3.
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