sexta-feira, 31 de março de 2017

No 31. A Profecia de Istambul. Alberto S. Santos. «Mas só Simão, por entre caminhos indescortináveis a qualquer viajante, conseguia orientar a pequena comitiva, sem erro algum»

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O Pacto de Melchior. ... Cerca de 250 anos depois; Março de 1554
«(…) Foi ele quem me disse que sabia fazer pactos de sangue para a vida inteira, e para além dela... Ui, isso parece coisa de bruxo... Ainda podem prender-nos e torturar-nos!, comentara, com receio, Fernando del Pozo, pois dizia-se que, a partir dos catorze anos, a Inquisição (maldita) já torturava gente. Sempre lhes fora vedado assistir aos autos de fé, mas todos sabiam que se garroteavam e queimavam os hereges, os marranos, os renegados, bruxos e toda a sorte de gente que punha em causa a verdadeira fé de Cristo. E Fernando del Pozo temia, mais do que ninguém, a vergonha de poder ser associado a algo que ofendesse a Igreja cordovesa. Muito embora seu pai, o director do coro da Catedral, tivesse já morrido anos antes, estava aos cuidados do tio Martín Alonso, famoso clérigo pregador e cónego da cidade.
Acho que não... Ainda não entramos nos quinze!..., respondera Simão, para desanuviar, e todos se riram. Em passo de corrida, os três rapazes acercaram-se rapidamente do sopé da serra. Ao longe, viam-se as ruínas da cidade palatina que, em tempos idos, fora a sede do poder califal muçulmano na Península Ibérica, a Medina Zahara. Enquanto vencia o declive, Jaime viajou, novamente, para Rosa. Aquela rapariga despertara-1he sentimentos que a vida ainda não lhe havia feito compreender totalmente, mas que lhe provocavam formigueiros no corpo e compressões, principalmente no estômago. Recordou que abalaria, em breve, para uma prolongada estada em Orão, no Norte de África. Receou, outra vez, o seu jovem coração, os efeitos dessa separação.
Estamos quase a chegar à cabana do velho!, quebrou-lhe o português as cogitações, trazendo-o de volta à missão que prosseguiam e que tanto os animava.
O septuagenário homem, de rosto de casca de carvalho e cabelo tão branco como um plumoso cisne, moldando uma redonda e tostada coroa no tecto da cabeça, vivia nas imediações. Mas só Simão, por entre caminhos indescortináveis a qualquer viajante, conseguia orientar a pequena comitiva, sem erro algum. Decorara-os, interiormente, nas duas vezes que, com a tia, visitara a decrépita cabana. Melchior encontrava-se sentado sobre as pernas, com as mãos nos joelhos, fitando o local de onde surgiram os três rapazes. Vestia uma túnica branca desbotada, cingida por uma corda à cintura. Apesar de o seu mundo de silêncio lhe ter revelado que gente se aproximava, pareceu perturbar-se quando enxergou três ofegantes adolescentes a subir a ladeira. O olhar cirúrgico, guardião do baú da sabedoria, enchido, ao longo da vida, por inúmeras viagens, íntimas reflexões sobre a condição humana e discretas observações dos comportamentos de quem foi passando por si, rapidamente farejou o português. Lembrava-se dele, de o achar esperto e curioso, e de o ter levado a visitar uma caverna escondida, onde guardava, secretamente, alguns dos seus pertences, nomeadamente, livros raros.
Jaime deteve a marcha, fixado no estranho ser que os mirava através de duas lâmpadas negras e oblíquas, despontando sob farfalhudas sobrancelhas encanecidas. Tu és o português!, reagiu, arremessando o longo e esguio indicador de unha comprida na direcção de Simão. As longas neves que lhe escorriam da cabeça e a pose seráfica pintada pelo olhar, ao mesmo tempo sereno e penetrante, conferiam ao ancião a personificação da sabedoria e da bondade, juntas num corpo curtido pelo tempo e pelos misteriosos conhecimentos que adquiriu em viagens e secretas leituras.
Sou sim, Melchior! E estes são os meus amigos Jaime e Fernando, com quem quero fazer um pacto de sangue, retorquiu o moço, acenando a cabeça e apontando os amigos, ainda impressionado pela força e magnetismo que emanavam do enigmático decano. O homem fitou-os, longamente, com um ar grave e sério. O prolongado silêncio tornou-se intimidatório, até que os jovens se entreolharam, procurando encontrar uma solução para o impasse. O provecto anfitrião levantou-se com agilidade, estudou os três, por uma última vez, e, quebrando o gelo, abriu um largo sorriso, assumindo um tom cordial: entrem! São meus convidados!» In Alberto S. Santos, A Profecia de Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-103-6.

Cortesia de PEditora/JDACT