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Amélia murmurou um com licença!, seco e breve e fechou a porta. Justina desceu
a escada. Vestia luto carregado e, assim, muito alta e fúnebre, com os cabelos
pretos divididos ao meio por uma risca larga, parecia um boneco mal articulado,
demasiado grande para mulher e sem o menor sinal de graça feminina. Só os olhos
negros, profundos nas olheiras maceradas de diabética, eram paradoxalmente belos,
mas tão graves e sérios que a graça não morava neles. Ao chegar ao patamar,
parou junto da porta que ficava defronte da sua e aproximou o ouvido. De dentro
não vinha qualquer rumor. Fez um trejeito de desprezo e afastou-se. Quando ia entrar,
ouviu abrir-se uma porta no andar de cima e, logo a seguir, um ruído de vozes. Ajeitou
o capacho para se dar um pretexto para não sair dali. De cima vinha um diálogo animado:
rla o que não quer é ir trabalhar!, dizia uma voz feminina com asperezas de irritação.
Seja lá o que for. É preciso cuidado com a pequena. Está na idade perigosa, respondeu
uma voz de homem. Nunca se sabe o que estas coisas dão. Qual idade perigosa, qual
quê? Hás de ser sempre o mesmo. Com dezanove anos, idade perigosa? Isso só teu!...
Justina
achou conveniente sacudir o capacho com força, para anunciar a sua presença. A conversa,
em cima, interrompeu-se. O homem começou a descer a escada, ao mesmo tempo que dizia:
não a obrigues a ir. Se houver alguma novidade telefona-me para o escritório. Até
1ogo. Até 1ogo, Anselmo. Justina cumprimentou o vizinho com um sorriso sem amabilidade.
Anselmo passou, fez um solene gesto na direcção da aba do chapéu e articulou com
belo timbre uma saudação cerimoniosa. A porta da escada, em baixo, teve um
bater cheio de personalidade, quando ele saiu. Justina cumprimentou para cima:
bom dia, dona Rosália. Bom dia, dona Justina. Que tem a Claudinha? Está doente?
Como soube? Estava aqui a sacudir o capacho e ouvi o seu marido. Pareceu-me
perceber... Aquilo é manha. O meu Anselmo é que não pode ouvir a filha queixar-se.
É o ai-jesus... Diz ela que lhe dói a cabeça. Mândria é que ela tem. Tão grande
é a dor de cabeça que já está outra vez a dormir!
Nunca
se sabe, dona Rosália. Foi assim que eu fiquei sem a minha filha, que Deus
haja. Não era nada, não era nada, diziam, e lá se foi com a meningite... Tirou um
lenço e assoou-se com força. Depois, continuou: coitadinha... Com oito anos... Não
me esquece... Está agora a fazer dois anos, lembra-se, dona Rosália? Rosália lembrava-se
e enxugou uma lágrima de circunstância. Justina ia insistir, lembrar pormenores
já sabidos, apoiada à compaixão aparente da vizinha, quando uma voz rouca lhe cortou
as palavras: Justina! O rosto pálido de Justina tornou-se de pedra. Continuou a
conversar com Rosália até que a voz se ouviu mais alta e violenta: Justina!!! Que
é?, perguntou. Faz favor de vir para dentro. Não quero conversas na escada. Se
estivesse tão farta de trabalhar como eu, não tinha disposição para dar à língua!
Justina encolheu os ombros com indiferença e prosseguiu a conversa. Mas a outra,
incomodada pela cena, despediu-se. Justina entrou em casa. Rosália desceu
alguns degraus e apurou o ouvido. Através da porta passaram exclamações ásperas.
Depois, subitamente, o silêncio.
Era sempre
assim. Ouvia-se o homem ralhar, depois a mulher pronunciava algumas poucas e inaudíveis
palavras e ele calava-se. Rosália achava isto muito esquisito. O marido de
Justina tinha fama de brutamontes, com o seu corpanzil inchado e os seus modos grosseiros.
Ainda não chegara aos quarenta anos e parecia mais velho, por causa do rosto flácido,
de olhos papudos e beiço reluzente sempre caído. Ninguém percebia como e por que
dois seres tão diferentes se tinham casado. Verdade que também ninguém se lembrava
de os ter visto juntos na rua». In José Saramago, Claraboia, 1953,
Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
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