jdact
Palacioli,
Paço de Sousa, Anégia, ano 997
«(…)
Depois da inspecção, o general chamou para junto de si um punhado de homens
que, quer pelo aparelho das montadas, quer pelo aspecto mais distinto, deveriam
ter funções de comando. Apesar da distância, Ouroana conseguiu perceber pelas conversas
que a missão destinada àqueles homens era seguir em direcção à cidade do Portucale
(actual cidade do Porto) e que a restante parte do exército aguardaria, a curta
distância, junto a um vau do rio Sousa. Esta última assegurava a protecção dos
que punham o mosteiro de Paço de Sousa a ferro e fogo. Acorrentem os escravos!
Seguirão a pé, na rectaguarda! Destaquem-se quatro soldados para os guardarem!,
ordenou, firme, Almançor. De mãos agrilhoadas à frente do regaço e ligadas a cerca
de uma dezena de cativos, o grupo de Ouroana era um dos três que, ferozmente custodiado,
partia daquele cenário de terror. O guarda que a vigiava era um soldado de meia-idade,
cuja participação em muitas batalhas se denunciava pelas vincadas cicatrizes gravadas
na face, na testa e no pescoço, bem como pelo ligeiro coxear da perna esquerda.
Mal a marcha foi iniciada, Ouroana pressentiu-lhe um estranho sorriso por entre
os dentes podres. O olhar, húmido e libidinoso, denunciava-lhe os pensamentos. De
facto, estava convencido que havia chegado a sua sorte. E que sorte! Nunca
imaginara encontrar ser tão inquietante e atraente à face da terra e logo à sua
inteira disposição: apenas no Paraíso, e depois de ter participado na Jihad,
tal lhe parecia possível.
A turba
seguiu pelas margens do Sousa até se confundir com os estandartes da outra
parte do exército. Atrás das três filas de cristãos agrilhoados que encerravam a
comitiva, apareceu um batalhão de ginetes comandado por outro jovem esbelto, mas
forte, de barba rala e aparentando cerca de vinte anos. Ao aproximar-se das tropas
estacionadas mais à frente, Ouroana percebeu a realidade: quaisquer que fossem
os alvos de Almançor, só podia rezar pelas suas almas. A temível máquina de guerra
cordovesa chegara àquele local, depois de destruir o Mosteiro de São Pedro de Lardosa
e de sitiar o Castelo de Penafiel. Ambas as facções tomaram as posições já definidas
e mais que conhecidas pelas tropas. Os três grupos de cativos, permanentemente
vigiados, ocupavam uma zona marginal da falange de guerra, enquanto o sol
queimava sobre as suas cabeças. A fome e a sede começaram a apertar. O guarda
fez sinal aos prisioneiros de que os levaria ao rio para beber. Fê-los sentar em
círculo e percorrer depois, um a um, os cerca de cinquenta passos que separavam
aquele local de um salgueiral, junto a um meandro do rio que dava protecção visual
a quem lá se encontrasse. A noviça estranhou que, não sendo a última do grupo, o
soldado a deixasse para o fim. Ao caminhar em direcção ao rio, começou a suspeitar
do seu ofegar mais acelerado e do renovado brilho no olhar. Junto ao leito, o guarda
apontou para a água e repetiu o ritual que havia cumprido com os anteriores. Como
julgava que, à semelhança dos demais cativos, não seria entendido, colocou a sua
mão em concha e simulou levar a água à boca.
Bebe,
infiel!, disse, ansioso, na sua língua. Quando Ouroana apanhou a água que lhe mataria
a sede atroz, o guarda tomou-lha e virou-a ao contrário. A jovem adivinhou-lhe a
lascívia no cínico sorriso que se confirmou quando, pela segunda vez naquele dia,
o metal de uma espada lhe atrapalhou a respiração. A tensão já não lhe permitiu
compreender as palavras do agareno, ao mesmo tempo que lhe fazia sinal para se deitar:
vais ser minha, cabra infiel! Vou possuir-te aqui mesmo! A sua cabeça sacudiu-se
automaticamente para trás, repelida pelo cheiro repugnante que saía daquela boca
de rala e apodrecida dentadura, ao mesmo tempo que na sua mente passava um
rodopio de pensamentos desconexos. Preferia morrer a ser violada. Enquanto
entrevia o seu Mosteiro tornar-se um fio no horizonte, a velocidade do seu pensamento
levava-a até ao sonho que a fizera acreditar que era portadora de uma missão no
mundo para atingir a perfeição, a salvação e, assim, alcançar o Paraíso. Será que
Deus lhe pedia que se sacrificasse, deixando a sua pureza ser trespassada pelo
infiel? Pretenderia Ele que se opusesse, colocando fim à vida antes de ser violada,
demonstrando ao muçulmano, através da sua auto-imolacão, de que têmpera e convicção
são feitos os verdadeiros crentes?
No
meio dessa vertigem, o árabe arrumou as suas vestes e, com vista à profanação,
colocou-se por detrás de Ouroana, agarrando-a pelo pescoço. Encostou-lhe a espada
ao ventre e obrigou-a a ajoelhar-se. De seguida, levou o dedo indicador ao nariz:
não queria barulhos inconvenientes. A jovem sentiu, então, brotar de dentro de si
uma onda de energia que a levou a lutar com todas as suas forças. Enquanto o
soldado a forçava a deitar-se de barriga para baixo, esbracejou, esperneou, mordeu-o
e acotovelou-o. Não obstante, o agareno conseguiu imobilizá-la e atar-lhe as mãos
com a corda que, premeditadamente, havia trazido consigo. Desesperada, gritou
por socorro. De imediato, com a sua mão esquerda, o guarda tapou-lhe a boca e, com
a direita, despojou-a das suas vestes, restos do hábito que vestira de manhã,
quando lhe haviam chegado os sinais daquele imprevisto alvoroço». In
Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova, Porto Editora, 2008, ISBN
978-972-004-166-1.
Cortesia
de PEditora/JDACT