quinta-feira, 2 de março de 2017

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «A confiança no irmão Henrique era total, tanto quanto o afeiçoamento que lhe devotava sobrelevava os defeitos. Sentiu-se manietado por uma força de atracção que o prendeu a este irmão»

jdact

«(…) Sentindo-se encorajado por estes pensamentos, o rei enrijou a silhueta, deitou para trás aquilo que não conseguia desvendar e numa voz forte chamou pelo reposteiro: Gonçalo! Gonçalo! O chamamento, dito em tons que ecoaram pelo Paço, chegou ainda audível aos ouvidos do infante Fernando, que nesse momento se preparava para abandonar o terreiro da casa apalaçada. Pressentindo pela tonalidade da voz o anúncio de uma tempestade, o infante apurou o ouvido, pensando poder distinguir as palavras que Duarte trocou com o servidor, mas o que escutou não lhe permitiu decifrar o recado que o pensamento do irmão privilegiou: ide já ligeiro ao encontro do infante Henrique. Dizei-lhe da urgência do seu conselho e que o espero sem demora em Lisboa, para onde seguirei. Desorientado pela complexidade de um assunto que lhe desordenava as ideias, o rei esqueceu-se de que a precedência entre os irmãos começava em Pedro e não em Henrique, ligação que, por ser irreflectida, trará consequências.
Honestamente submerso pela governação, o rei Duarte I não deu a princípio pelas manobras. Mas algumas manifestações alertaram-lhe o pensamento, sentindo grande necessidade de decifrar o que se passava. Não era de especulações, mas, roído pelo pressentimento, mandou alguém remexer nos grupos que fugiam ao seu controlo. Que não! Tudo estava calmo no reino de sua majestade, não havia motivos para alarme. Descansasse, nada temesse, porque os nobres respeitavam-no, a Igreja temia-o e o povo amava-o. Duarte descansou, como o aconselharam. Eis senão, sem aviso, entra-lhe o irmão mais novo pelo sossego adentro. Desarruma-lhe a casa que tem dentro da cabeça, provoca-lhe sentimentos violentos, assegura-lhe que as suspeitas vão além disso. Apreensivo, receia o pior. Não sabe onde o enredo o leva, se será ele o vencido ou, pelo contrário, se vencerá. Desconhece a origem, mas fica persuadido de que, se existe uma maquinação, só pode ser gerada por um grande nobre com influência na corte e no reino.
Duarte I infernizava-se por não estar na posse de todos os dados e, apesar de ser conhecedor de um circuito de intenções, continua sem saber quem atirou o irmão mais novo para a frente. Incomodado, estica até ao limite o cérebro, à espera que uma lufada de siso lhe fertilize o pensamento. Enquanto cruzava mais uma vez o compartimento de ponta a ponta, veio-lhe ao pensamento a imagem do infante Henrique, uma representação visual precipitada, um condicionamento virtual que o juízo lhe enviou para resolução. Subjugado pela áurea do homem cuja forte energia psicológica e física o impressionava, cedeu sob a imagem que lhe oferecia as devidas soluções e nenhumas dúvidas. Mais uns passos para lá, outros tantos para cá, conta Duarte. No momento em que me ocorreu chamar por Henrique, fui levado por uma força desconhecida, atraído por uma imagem obsessiva, pois vi nele o homem sério, honesto, fiel à Coroa, sem pôr em dúvida as suas virtudes nem sobrevalorizar os defeitos.
A confiança no irmão Henrique era total, tanto quanto o afeiçoamento que lhe devotava sobrelevava os defeitos. Sentiu-se manietado por uma força de atracção que o prendeu a este irmão, e de nada lhe valia exercitar o juízo à procura de outras soluções, porque não conseguia libertar-se do íman que o atraía. Por que pensamento, por que razão vai Duarte encontrar-se com Henrique, se Pedro é mais velho do que ele, mais versado na política, mais cosmopolita, mais reflectido, o seu irmão preferido, como gostava de dizer. Porquê, por que encargo este rei inteligente foi atrás de um impulso, quando uma das suas mais pronunciadas características era a ausência de arrebatamentos? Há coisas para as quais não vale a pena procurar explicação». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de Cdo Autor/JDACT