domingo, 19 de março de 2017

A Eternidade e o Desejo. Inês Pedrosa. «Nesse dia em que não morri viciei-me no sofrimento, eu sei. Sei tudo o que há para saber e nem assim desisto. Um dia contar-te-ei, quando conseguir que tu me ames…»

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«(…) Porque estou eu aqui contigo, Clara, com esta enferrujada esperança de que talvez venhas ainda a estar comigo? Não pergunto porque te desejo tanto, não é que o desejo não tenha as suas razões, mas só poderiam cartografar-se no espaço inviável de um antes que nunca se detecta. Desejamos antes de desejarmos; somos desejados pelo desejo. Talvez estejas certa, talvez tenha sido a tua cegueira o que me atraiu para ti,o porte altivo da tua cegueira, sim, mas, acima de tudo, o desejo de me fazer amar por uma mulher que não pode ver-me. Sei que sou um homem bonito, Clara, mas não gosto do que a beleza tem feito de mim. Vou ao ginásio como outros vão à missa, para aumentar as minhas bem-aventuranças. As potências do corpo: músculos, bíceps, abdominais, nádegas, ámen. Tudo no sítio, e muita fibra ao pequeno-almoço. Deslizo sobre a superfície das coisas e os corpos das mulheres, nada de denso ou difícil me é pedido, será por isso que preciso de ti?
Pensei que ficando do lado de fora da vida conseguiria agarrar a dor pelas costas e matá-la. É que certa vez fiz uma coisa terrível. Involuntária, mas nem por isso menos terrível. Foi sem querer, balbuciamos, depois da catástrofe. Mas sabemos que essa ausência do querer não existe no universo humano. Sabemos que é porque queremos isto em vez daquilo, ou porque queremos tudo ao mesmo tempo, ou porque queremos o que nos faz mal. Sabemos a que ponto aquilo que queremos desmancha aquilo que pensamos que queremos. Sabemos, sim, mas o vulcão do querer é mais violento do que tudo o que sabemos ou pensamos. Eu não queria querer-te tanto, Clara. Repito que não quero querer-te e já te quero mais quando acabo de o repetir. O esporão da infelicidade acirra este meu querer, talvez eu saiba que não tenho o direito a ter o que quero, talvez seja essa a minha forma de me punir. Fiz uma coisa que me deveria ter matado. Uma coisa que de algum modo me matou. Mas morrer de algum modo não é igual a morrer completamente, deixar de respirar, perder todas as delícias da existência, incluindo a de sofrer.
Nesse dia em que não morri viciei-me no sofrimento, eu sei. Sei tudo o que há para saber e nem assim desisto. Um dia contar-te-ei, quando conseguir que tu me ames ou quando conseguir aceitar em definitivo o teu desamor. Clara, eu fiz uma coisa irreversível, trágica, pela qual ninguém me culpou. Sobrevivo com essa culpa, sozinho, até hoje. Sobrevivia com essa culpa, sozinho, até que te encontrei, e, como um adolescente, empurrei as culpas para o mundo, subitamente não mais do que uma mão-cheia de terra e pó debaixo dos teus pés. O coração, os pés, as mãos, as asas, tudo vem da cabeça, que é o molde da própria fantasia. Se esta for de homem, as acções serão racionais; se de águia, altivas; se de leão, generosas; se de boi, vis. Pedes-me que te conte agora o que vejo. Que te conte, pelo menos, a causa do meu amor por esse padre, que afinal conheces pouco. O amor não tem causa, querido amigo. Mas posso dizer-te que António Vieira era um belo homem. Belo? Sim; belo, até dessa maneira imediata que se tem como ofensa: alto, espadaúdo, de olhos amplos, vestido com uma túnica grosseira, mais parda do que preta. Dormia pouco, comia farinha de pau, lia Santa Teresa de Ávila e, sobretudo, tinha o poder de transformar o mundo através da palavra. Teve esse poder como mais ninguém, até hoje. Ninguém? Nem Sócrates? Nem Cristo? Nem Buda? Nem os profetas?, perguntas. Queres dizer que sou uma exagerada, e é verdade. Temos de carregar nos contornos do mundo se pretendemos sacudi-lo, Vieira compreendeu-o como ninguém.
Sócrates procurava o rigor do conhecimento, não a transfiguração do universo. Os líderes espirituais e os profetas fazem da palavra uma trincheira ou um jardim, não um engenho para caminhar no escuro, como fez Vieira. E Cristo, meu querido, que eu saiba, não deixou nada escrito, deixou que escrevessem por ele os homens, que sempre têm trinta versões para a mesma história. Deixou a palavra escrita aos homens, talvez por amor, até acredito que sim, como prova do amor extremo, que actua através do silêncio para não ser confundido com uma demanda de gratidão. Cristo deixou aos homens o arbítrio e o triunfo da palavra escrita. Para que o entendessem, e entendessem a arbitrariedade das coisas do mundo, usou a parafernália dos milagres. Até os seus discípulos precisaram dos milagres para o seguirem». In Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote, 2007, ISBN 978-972-203-495-1.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT