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Porque estou eu aqui contigo, Clara, com esta enferrujada esperança de que talvez
venhas ainda a estar comigo? Não pergunto porque te desejo tanto, não é que o
desejo não tenha as suas razões, mas só poderiam cartografar-se no espaço inviável
de um antes que nunca se detecta. Desejamos antes de desejarmos; somos
desejados pelo desejo. Talvez estejas certa, talvez tenha sido a tua cegueira o
que me atraiu para ti,o porte altivo da tua cegueira, sim, mas, acima de tudo,
o desejo de me fazer amar por uma mulher que não pode ver-me. Sei que sou um
homem bonito, Clara, mas não gosto do que a beleza tem feito de mim. Vou ao
ginásio como outros vão à missa, para aumentar as minhas bem-aventuranças. As
potências do corpo: músculos, bíceps, abdominais, nádegas, ámen. Tudo no sítio,
e muita fibra ao pequeno-almoço. Deslizo sobre a superfície das coisas e os corpos
das mulheres, nada de denso ou difícil me é pedido, será por isso que preciso
de ti?
Pensei
que ficando do lado de fora da vida conseguiria agarrar a dor pelas costas e
matá-la. É que certa vez fiz uma coisa terrível. Involuntária, mas nem por isso
menos terrível. Foi sem querer, balbuciamos, depois da catástrofe. Mas sabemos
que essa ausência do querer não existe no universo humano. Sabemos que é porque
queremos isto em vez daquilo, ou porque queremos tudo ao mesmo tempo, ou porque
queremos o que nos faz mal. Sabemos a que ponto aquilo que queremos desmancha
aquilo que pensamos que queremos. Sabemos, sim, mas o vulcão do querer é mais
violento do que tudo o que sabemos ou pensamos. Eu não queria querer-te tanto,
Clara. Repito que não quero querer-te e já te quero mais quando acabo de o
repetir. O esporão da infelicidade acirra este meu querer, talvez eu saiba que
não tenho o direito a ter o que quero, talvez seja essa a minha forma de me
punir. Fiz uma coisa que me deveria ter matado. Uma coisa que de algum modo me matou.
Mas morrer de algum modo não é igual a morrer completamente, deixar de
respirar, perder todas as delícias da existência, incluindo a de sofrer.
Nesse
dia em que não morri viciei-me no sofrimento, eu sei. Sei tudo o que há para
saber e nem assim desisto. Um dia contar-te-ei, quando conseguir que tu me ames
ou quando conseguir aceitar em definitivo o teu desamor. Clara, eu fiz uma
coisa irreversível, trágica, pela qual ninguém me culpou. Sobrevivo com essa
culpa, sozinho, até hoje. Sobrevivia com essa culpa, sozinho, até que te encontrei,
e, como um adolescente, empurrei as culpas para o mundo, subitamente não mais
do que uma mão-cheia de terra e pó debaixo dos teus pés. O coração, os pés, as
mãos, as asas, tudo vem da cabeça, que é o molde da própria fantasia. Se esta
for de homem, as acções serão racionais; se de águia, altivas; se de leão,
generosas; se de boi, vis. Pedes-me que te conte agora o que vejo. Que te
conte, pelo menos, a causa do meu amor por esse padre, que afinal conheces
pouco. O amor não tem causa, querido amigo. Mas posso dizer-te que António
Vieira era um belo homem. Belo? Sim; belo, até dessa maneira imediata que se
tem como ofensa: alto, espadaúdo, de olhos amplos, vestido com uma túnica
grosseira, mais parda do que preta. Dormia pouco, comia farinha de pau, lia
Santa Teresa de Ávila e, sobretudo, tinha o poder de transformar o mundo
através da palavra. Teve esse poder como mais ninguém, até hoje. Ninguém? Nem
Sócrates? Nem Cristo? Nem Buda? Nem os profetas?, perguntas. Queres dizer que
sou uma exagerada, e é verdade. Temos de carregar nos contornos do mundo se
pretendemos sacudi-lo, Vieira compreendeu-o como ninguém.
Sócrates
procurava o rigor do conhecimento, não a transfiguração do universo. Os líderes
espirituais e os profetas fazem da palavra uma trincheira ou um jardim, não um
engenho para caminhar no escuro, como fez Vieira. E Cristo, meu querido, que eu
saiba, não deixou nada escrito, deixou que escrevessem por ele os homens, que
sempre têm trinta versões para a mesma história. Deixou a palavra escrita aos
homens, talvez por amor, até acredito que sim, como prova do amor extremo, que
actua através do silêncio para não ser confundido com uma demanda de gratidão.
Cristo deixou aos homens o arbítrio e o triunfo da palavra escrita. Para que o
entendessem, e entendessem a arbitrariedade das coisas do mundo, usou a
parafernália dos milagres. Até os seus discípulos precisaram dos milagres para
o seguirem». In Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote,
2007, ISBN 978-972-203-495-1.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT