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e wikipedia
A
nossa cidade é um lugar tranquilo
«(…)
Que todos os recém-chegados, mesmo os jornalistas, devessem visitar a polícia,
era um costume provinciano que remontava à década de 40. Como era um exilado
político recém-chegado ao país depois de muitos anos de ausência e porque,
embora ninguém tivesse tocado no assunto, sentira a presença dos guerrilheiros
separatistas curdos (PKK) na cidade, Ka não fez objecção. Eles saíram para a
neve, atravessando um mercado de frutas e passando pelas lojas de autopeças e
ferragens da avenida Kâzim Karabekir, pelas casas de chá onde homens
desempregados, deprimidos, olhavam a televisão e a neve caindo, e por lojas de
laticínios que exibiam grandes queijos amarelos redondos; levaram quinze
minutos para cruzar a cidade em diagonal. No caminho, Serdar bei parou para
mostrar a Ka o lugar onde o ex-presidente fora assassinado. Conforme um boato,
ele fora morto por causa de uma simples disputa municipal: a demolição de uma
sacada ilegal. Capturaram o agressor três dias depois, na aldeia para onde
tinha fugido; quando o encontraram escondido num celeiro, ele ainda estava com
a arma. Mas houvera tanta bisbilhotice durante os três dias da sua captura que
ninguém queria acreditar que ele era o verdadeiro culpado: a simplicidade da
sua motivação desapontava. O quartel da polícia de Kars ocupava um comprido
edifício de três andares na avenida Faikbey, onde as velhas construções de
pedra, outrora pertencentes a russos e arménios abastados, agora, na sua
maioria, sediavam órgãos do governo. Enquanto esperavam pelo subchefe de
polícia, Serdar bei chamou a atenção para os altos tectos ornamentados e
explicou que entre 1877 e 1918, durante a ocupação russa da cidade, aquela
mansão com quarenta quartos fora, a princípio, a residência de um rico arménio,
e depois, um hospital russo.
Kasim
bei, o subchefe de polícia, veio com a sua barriga de cerveja recebê-los no
corredor e os conduziu à sua sala. Ka logo percebeu que estavam diante de um
homem que não lia jornais nacionais como o Republicano,
pois os considerava de esquerda. Notou também que ele não ficou
especialmente impressionado ao ver Serdar bei elogiar alguém simplesmente por
ser poeta, mas que o temia e respeitava pelo facto de ser proprietário do
principal jornal local. Depois que Serdar bei terminou de falar, o subchefe de
polícia voltou-se para Ka. O senhor quer protecção? Como? Estou sugerindo
apenas um policial à paisana. Para que fique tranquilo. Será que preciso mesmo
disso?, perguntou Ka no tom inquieto de um homem cujo médico tivesse acabado de
recomendar que passasse a usar uma bengala. Nossa cidade é um lugar tranquilo. Apanhamos
todos os terroristas que estavam semeando a discórdia entre nós. Mas ainda
assim eu recomendo que se faça isso, por via das dúvidas. Se Kars é um lugar
tranquilo, eu não preciso de protecção, disse Ka. No íntimo ele esperava que o
subchefe de polícia lhe garantisse novamente que Kars era um lugar tranquilo,
mas Kasim bei não repetiu a afirmação.
Eles
rumaram em direcção a norte, para Kalealti e Bayrampaşa, os bairros mais
pobres. Ali os barracos eram feitos de pedra, tijolos e alumínio corrugado dos lados.
Sob a neve que continuava a cair, foram andando de casa em casa: Serdar bei
batia numa porta e, se uma mulher atendia, ele perguntava se podia falar com o
homem da casa; quando Serdar bei o reconhecia, falava-lhe, num tom que
inspirava confiança, que seu amigo, jornalista famoso, viajara de Istambul a
Kars para escrever sobre as eleições e também para descobrir algo mais sobre a
cidade, para escrever, por exemplo, sobre o porquê de tantas mulheres estarem suicidando-se,
e se aqueles cidadãos pudessem dividir com ele suas preocupações, estariam
fazendo uma boa coisa para Kars. Uns poucos mostraram-se muito amistosos,
talvez porque pensassem que Ka e Serdar bei eram candidatos e estavam trazendo-lhes
latas de óleo de girassol, caixas de sabão ou pacotes de biscoitos e de
macarrão. Se eles resolviam convidar os dois homens para entrar por curiosidade
ou simples hospitalidade, a primeira coisa que diziam a Ka era que não tivesse
medo dos cães. Alguns abriam as suas portas, temerosos, imaginando, depois de
tantos anos de intimidação por parte da polícia, que se tratava de mais uma
batida, e mesmo depois de perceberem que aqueles homens não eram do governo,
mantinham-se em silêncio. Quanto às famílias das jovens que se tinham suicidado
(em pouco tempo, Ka ouvira falar de seis casos), todas insistiam que as suas
filhas não tinham dado previamente nenhum motivo para preocupação, deixando-os
a todos horrorizados e consternados com o acontecido». In Orhan Pamuk, Neve, 2002, Editorial
Presença, colecção Grandes Narrativas, 2008, ISBN 978-972-233- 910-0.
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