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A primeira coisa e a maior que jamais se obrou, não no mundo, senão antes do
mundo, foi a geração eterna do Verbo: e como foi, não feita, mas produzida, uma
obra tão grande, tão imensa, tão portentosa e incompreensível? Não de outra maneira
que do conhecimento de si mesmo. Conheceu Deus o seu ser, a sua grandeza, a sua
infinidade, a sua omnipotência; e o parto que saiu deste imenso conceito de si
mesmo, foi outro ele, outro mesmo; foi e é o Verbo tão grande, tão imenso, tão
infinito, tão omnipotente, tão Deus como o mesmo pai. A imagem mais perfeita, a
proporção mais ajustada, e medida mais igual da obra, é o conhecimento de si
mesmo em quem a faz. Quando Apeles pintava Alexandre, tinha na mente a
Alexandre; quando Alexandre conquistava o mundo, tinha na mente a si mesmo. Na
ideia de Apeles cabia Alexandre num quadro; na ideia de si mesmo não cabia
Alexandre no mundo; por isso o conquistou todo. A uma cega nada se recusa, uma
cega facilmente entra na capela dos corações alheios, por pequena que seja, e
mal iluminada. Este grupo de seguidores de António Vieira vai para Salvador da
Bahia, como nós. Depois continuam, Recife, Maranhão, Belém. Tinham um quarto a
mais, esperavam uma escritora que deveria fazer a crónica da viagem e que, à
última hora, se descartara.
Escritoras,
dizes tu, para dizeres alguma coisa, e a voz estremece-te de frio. Explico-te
que eles só têm um quarto, e que lhes disse que éramos um casal. Pergunto-te se
isso te incomoda, precipitas-te a responder que não, que não, a voz de repente
borbulhante. Recordo-te que os quartos de casal normalmente têm duas camas. E
explico-te que, se não for o caso, pedimos para trocar. E que faremos com eles
o resto do trajecto. Extraordinária coincidência, termos sido chamados pelo padre
António Vieira. De certa maneira, foi ele que me levou ao Brasil pela primeira
vez. O meu entusiasmo magoa-te, leio-te a ofensa na voz enquanto me dizes
coisas banais e sensatas, que não crie demasiadas expectativas, que ninguém
consegue regressar ao lugar onde foi feliz. Conheço muito mais do Brasil do que
a felicidade, Sebastião. Como se alguém pudesse regressar ao lugar onde foi
infeliz. Não se é duas vezes infeliz da mesma maneira, e ninguém é feliz de
maneira nenhuma. Inventamos aquilo de que nos queremos lembrar, isso sim.
Digo-te que gosto de pensar que foi para que eu me inventasse melhor que o meu
amor pelo António me devorou os olhos. Que António? O padre? Outro. Falar-te-ei
dele mais tarde. Mas o que tem esse homem a ver com a tua cegueira? Logo te
direi, Sebastião. Mas não julgues que foi o amor que me cegou. É verdade que o
amor cega, paralisa, entorpece, mas apenas para tudo o que não é o amor. E tudo
o que não é o amor é o mal do mundo. Não vale nada. Amei o bastante para já não
temer nada. O António foi a minha última visão. Zangas-te, voz e palavras em
sintonia, pelo menos isso.
Queres
saber se foi para ir ao Brasil ter com outro que te chamei. Relembro-te que não
te chamei, apenas te disse que queria ir ao Brasil, e tu ofereceste-te para me
acompanhares. Agradeço-te de novo a companhia. Quantas vezes terei de
agradecer? Digo -te que o pior de ser ceguinha é ter de estar sempre a agradecer.
Respondes que não sou ceguinha. Então como é que se diz, Sebastião? Invisual?
Peço-te que me poupes o chá de tília. Eu não tenho pena de ti, Clara. É
impossível termos pena de uma mulher que em menos de cinco minutos nos muda a
rota, sem sequer perguntar. Se calhar tenho é pena de mim. Vai dar ao mesmo, a
pena é contagiosa. E turva mais a vista do que a cegueira, vê se tens cuidado.
Mas podes estar descansado, o António já não pode incomodar-te. Está morto, mas
não me perguntes agora mais nada, não vá ele saltar do buraco dos meus olhos.
Vamos ter com os outros. Dizes que os meus olhos não são buracos, são apenas
lisos. Como que alheados. Só o alheamento os torna alarmantes, sim. Um tiro no
nervo óptico não desmancha o globo ocular, vê tu a minha sorte. Tão bom era o
cirurgião que me operou que nem o rasto de um ligeiro desfiguramento na face me
deixou. Até nisso tive sorte, o Brasil é o campeão da cirurgia plástica. Fiquei
apenas com uma cicatriz na cabeça, pequena, escondida sob o cabelo. Resmungas
que é difícil conseguir estar sozinho comigo. Desiste, amigo. Não me queiras de
um querer tão estreito. Para solidão, basta-me o negrume constante em que vivo.
E o meu riso, o riso apavorado em que choro as lágrimas que nunca mais poderei
ver». In Inês Pedrosa, A Eternidade e o Desejo, Publicações dom Quixote,
2007, ISBN 978-972-203-495-1.
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