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e wikipedia
A
nossa cidade é um lugar tranquilo
«(…)
Escondendo, como de
costume, a sujeira, a lama e a escuridão, a neve continuaria a falar de pureza
a Ka mas, depois do seu primeiro dia em Kars, já não lhe prometia inocência. A
neve ali era tediosa, irritante, assustadora. Nevara a noite inteira. Continuou
a nevar durante toda a manhã enquanto Ka percorria as ruas bancando o repórter
intrépido, entrando nos cafés cheios de curdos desempregados, entrevistando
eleitores, tomando notas e , ainda estava nevando mais tarde, quando ele subiu
as ruas íngremes e geladas para entrevistar o ex-presidente, o vice-presidente
e as famílias das moças que se tinham matado. Mas aquilo não o levava mais de
volta às ruas cobertas de neve da sua infância; não o fazia mais pensar, como
quando era criança ao olhar pelas janelas das sólidas casas de Nisantas,
que estava contemplando a paisagem de um conto de fadas; ele não tinha mais
voltado a um lugar onde podia desfrutar a vida de classe média de que sentia
tanta falta que chegava a visitá-la em sonhos. Em vez disso, a neve lhe falava
de desespero e de aflição.
Naquela
manhã bem cedo, antes que a cidade acordasse, e antes de se deixar vencer pela
neve, ele fez uma rápida caminhada, passando pelo bairro logo abaixo do Atatürk
Boulevard, e tomou o rumo da região mais pobre de Kars, um bairro chamado
Kalealti. As cenas que ele contemplou enquanto andava a passos rápidos sob os
galhos cobertos de gelo dos plátanos silvestres e dos oleandros, os velhos
edifícios russos decadentes, com chaminés apontando de cada janela, a
centenária igreja arménia sobranceando os depósitos de madeira e os geradores
de eletricidade, o bando de cães latindo para cada transeunte de uma ponte de
pedra de quinhentos anos enquanto a neve caía nas águas semicongeladas do rio
que corria lá em baixo, as finas fitas de fumaça elevando-se dos minúsculos
barracos de Kalealti que quedavam sem vida sob o manto de neve, fizeram-no
sentir uma tal melancolia que lhe vieram lágrimas aos olhos. Havia duas
crianças na margem oposta, uma menina e um menino que tinham saído cedinho para
comprar pão e lá se iam, ora balançando os pães quentes para a frente e para
trás, ora apertando-os contra o peito, parecendo tão felizes que Ka não pôde
deixar de sorrir. Não era a pobreza ou o desamparo que o perturbavam, mas o que
ele haveria de ver inúmeras vezes durante os dias seguintes, as vitrines vazias
das lojas de artigos fotográficos, as vidraças cobertas de gelo das casas de
chá apinhadas de gente onde os desempregados da cidade passavam o tempo jogando
cartas, e as praças vazias cobertas de neve. Aquelas visões lhe falavam de uma
estranha e densa solidão. Era como se ele estivesse num lugar de que o mundo
inteiro se esquecera, era como se nevasse no fim do mundo.
A
boa sorte acompanhou Ka durante toda a manhã, e quando, ao perguntar, as
pessoas ficavam sabendo quem ele era, todas queriam apertar-lhe a mão; elas o
tratavam como a um famoso jornalista de Istambul, do vice-presidente ao homem
mais humilde, todos abriam as suas portas e conversavam com ele. Foi
apresentado à cidade por Serdar bei, o editor da Gazeta da Cidade Fronteiriça (tiragem de trezentos e
vinte exemplares), que por vezes mandava notícias locais para o Republicano de Istambul
(que em geral não eram publicadas). Tinham recomendado a Ka que fizesse uma
visita ao nosso correspondente local antes de mais nada, logo que deixasse o
hotel pela manhã. Assim que encontrou o velho jornalista escondido no seu
escritório, percebeu que o homem sabia tudo o que havia para se saber em Kars.
Foi Serdar bei quem primeiro lhe fez a pergunta que ele ouviria centenas de
vezes durante sua estada de três dias. Bem-vindo à nossa cidade fronteiriça. Mas
o que veio fazer aqui? Ka explicou que viera cobrir as eleições municipais
e talvez escrever sobre o suicídio das jovens. Da mesma forma como aconteceu em
Batman, essas histórias de suicídio foram exageradas, respondeu o jornalista. Vamos,
vou apresentá-lo a Kasim bei, o subchefe de polícia. Por via das dúvidas, eles
devem saber que o senhor chegou». In Orhan Pamuk, Neve, 2002, Editorial
Presença, colecção Grandes Narrativas, 2008, ISBN 978-972-233- 910-0.
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