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Abanando a cabeça tristemente, Hrotrud beliscava e esfregava os dedos dos pés e
das mãos entorpecidos, sob o olhar dos dois rapazes silenciosos. Olhando-os,
ficou mais descansada. Será um parto fácil, disse ela para si mesma, tentando
afastar da ideia o pobre Elias. Afinal, ajudei Gudrun no parto destes dois e
foi bastante fácil. O rapaz mais velho deve ter quase seis invernos, uma
criança robusta, com um ar inteligente. O mais novo, o seu irmão bochechudo,
com três anos, abanava-se para trás e para a frente, chupando morosamente o
polegar. Eram ambos morenos, como o pai. Nenhum deles tinha herdado o
extraordinário cabelo dourado da sua mãe saxónia. Hrotrud recordou-se de como
os homens da aldeia tinham ficado a olhar espantados para o cabelo de Gudrun,
quando o cónego a trouxe de uma das suas viagens missionárias na Saxónia. Ao
princípio, o facto de o cónego ter trazido uma mulher tinha causado bastante
sensação. Alguns diziam que era contra a lei, que o Imperador tinha promulgado
um édito proibindo o casamento aos homens da Igreja. Mas outros diziam que não
podia ser porque era sabido que, sem uma mulher, um homem estava sujeito a todo
o tipo de tentações e fraquezas. Olhem para os monges de Stablo, diziam eles, que
envergonham a Igreja com as suas fornicações e bebedeiras. E não havia dúvida
de que o cónego não bebia e era um homem trabalhador. O compartimento estava
quente. A grande lareira estava cheia com grandes toros de vidoeiro e carvalho;
o fumo elevava-se em grandes rolos, saindo pelo buraco do telhado em colmo. Era
uma casa confortável. As vigas de madeira que formavam as paredes eram pesadas
e espessas e as frinchas entre elas estavam bem tapadas com palha e argamassa
para impedir a entrada do frio.
A
única janela existente tinha sido coberta com placas de carvalho, uma medida de
protecção suplementar contra os nordostroni, as nortadas frigidíssimas
do Inverno. A casa era suficientemente grande para estar dividida em três
compartimentos, um onde se encontrava o quarto do cónego e da sua mulher, um
para os animais que ali se abrigavam contra a intempérie. Hrotrud ouvia-os
resfolegar e bater com os cascos, à sua esquerda, e este, o compartimento
central, onde a família trabalhava e comia e as crianças dormiam. Para além do
bispo, cuja casa era feita em pedra, em Ingelheim ninguém tinha uma casa tão
boa como esta. Os membros de Hrotrud começaram a picar com formigueiro e a
palpitar, voltando a adquirir sensibilidade. Olhou para os seus dedos; estavam
duros e secos, mas as manchas roxas tinham desaparecido, dando lugar a um
cor-de-rosa-avermelhado com aparência mais saudável. Ela suspirou de alívio,
decidindo fazer uma oferta a São Cosme, em acção de graças. Hrotrud ficou junto
à lareira durante mais alguns instantes, usufruindo do seu calor; depois, com
um aceno encorajador para os rapazes, apressou-se na direcção do compartimento
onde a parturiente esperava. Gudrun estava deitada numa cama de turfa coberta
com palha fresca. O cónego, um homem moreno, com umas sobrancelhas espessas e
carrancudas, que lhe davam uma expressão de austeridade permanente, estava
sentado à parte. Acenou para Hrotrud, depois voltou a concentrar a sua atenção
no grande livro encadernado em madeira que tinha sobre os joelhos. Hrotrud já
tinha visto o livro em visitas anteriores, mas, sempre que o via, ficava cheia
de temor. Era um exemplar da Sagrada Escritura e era o único livro que ela
tinha visto. Tal como os outros aldeões, Hrotrud também não sabia ler nem
escrever. Mas sabia que aquele livro era um tesouro, que valia mais soldos em
ouro do que toda a aldeia ganhava num ano. O cónego tinha-o trazido da sua
terra natal, a Inglaterra, onde os livros não eram tão raros como no país
franco. Hrotrud apercebeu-se imediatamente de que Gudrun estava mal. A sua
respiração era fraca, o seu pulso estava demasiado rápido, todo o seu corpo
estava inchado e balofo. A parteira conhecia os sintomas. Não havia tempo a
perder. Pegou no saco que trazia e tirou dele um pouco de excrementos de pombo
que tinha recolhido cuidadosamente no Outono. Regressando à lareira, atirou as
ervas ao fogo, vendo com satisfação a forma como o fumo negro começou a subir,
limpando o ar de espíritos malignos. Devia ter de aliviar as dores, de forma a
que Gudrun pudesse descontrair-se e ajudar a criança a nascer. Para isso, tinha
de usar meimendro. Pegou num ramo de florinhas amarelas, raiadas de púrpura,
colocou-as num almofariz em loiça e reduziu-as habilidosamente a pó, tapando o
nariz por causa do cheiro acre que elas libertavam. Depois, deitou o pó num
copo de vinho tinto e levou-o a Gudrun, para ela o beber. O que lhe queres dar?,
perguntou o cónego bruscamente. Hrotrud estremeceu; quase se tinha esquecido de
que ele estava ali. Ela está fraca, por causa do trabalho de parto. Isto vai
aliviar-lhe as dores e ajudar a criança a nascer. O cónego franziu as
sobrancelhas. Tirou o copo das mãos de Hrotrud, atravessou o quarto a passos
largos e atirou-o ao lume, onde ele assobiou por momentos e depois desapareceu.
É um sacrilégio, mulher!
Hrotrud
estava horrorizada. Tinha passado semanas de busca penosa para conseguir juntar
aquela pequena quantidade do precioso medicamento. Virou-se para o cónego,
pronta a descarregar a sua ira, mas deteve-se quando viu o seu olhar impiedoso.
Está escrito, e bateu no livro com a mão para reforçar o que dizia. Darás à luz
na dor. Esse remédio é ímpio! Hrotrud estava indignada. Não havia nada de
anticristão no seu remédio. Então, ela não recitava nove Pai-Nossos cada vez
que arrancava uma das plantas da terra? O cónego nunca se tinha queixado quando
ela lhe tinha dado meimendro para aliviar as suas frequentes dores de
dentes. Mas não ia discutir com ele. Ele era um homem influente. Uma palavra
sobre as suas práticas ímpias e Hrotrud estaria arruinada. Gudrun gemeu na
angústia de mais uma dor. Muito bem, pensou Hrotrud. Se o cónego não autorizava
o meimendro, ela tinha de tentar outra coisa. Voltou ao seu saco e tirou um
longo pedaço de pano, cortado como o Sudário de Cristo. Com movimentos rápidos
e eficazes, atou-o firmemente ao abdómen de Gudrun. Gudrun gemeu quando ela a
levantou da cama. O mínimo movimento provocava-lhe dores, mas não havia nada a
fazer. Hrotrud tirou um pequeno pacote do seu saco, cuidadosamente embrulhado
num pedaço de seda. Dentro, encontrava-se um dos seus tesouros, um astrágalo
de um coelho morto no dia de Natal. Tinha-o obtido no ano anterior, por ocasião
de uma caçada imperial. Com todo o cuidado, cortou três fatias finas de osso e
pô-las dentro da boca de Gudrun. Mastiga isto devagar, ordenou ela a Gudrun que
assentiu, fraca. Hrotrud sentou-se à espera. Pelo canto do olho, observava o
cónego, de tal modo concentrado no seu livro que as suas sobrancelhas quase se
juntavam ao nariz». In Donna Woolfolk Cross, A Papisa Joana, 2000, Editorial Presença, colecção
Grandes Narrativas, 2010, ISBN 978-972-232-641-4.
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