sexta-feira, 17 de março de 2017

A Papisa Joana. Donna Woolfolk Cross. «Na altura, pensou que não poderia acontecer nada pior. Tinha oito anos e ainda não se tinha apercebido do horror e da crueldade do mundo»

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«Era o dia 28 de Wintarmanoth do ano da graça de 814, o Inverno mais rigoroso de que havia memória. Hrotrud, a parteira da aldeia de Ingelheim, avançava penosamente pela neve, a caminho da cabana do cónego. Uma rabanada de vento agitou as árvores, espetando dedos gelados no seu corpo que procuravam penetrar através dos buracos e dos remendos das suas finas vestes de lã. O caminho pela floresta estava cheio de neve; a cada passo que dava, enterrava-se quase até aos joelhos. A neve acumulava-se-lhe nas sobrancelhas e nas pestanas; tinha de limpar constantemente a cara para conseguir ver. As mãos e os pés doíam-lhe de frio, apesar das camadas de trapos de linho em que os tinha embrulhado. Apareceu uma mancha negra à sua frente, no caminho. Era um corvo morto. Neste Inverno, até estes robustos necrófagos morriam de fome: os seus bicos não conseguiam rasgar a carne podre enregelada. Hrotrud estremeceu, apressando o passo. Gudrun, a mulher do cónego, tinha entrado em trabalho de parto um mês antes do previsto. Linda altura para uma criança nascer, pensou Hrotrud amargamente. Cinco crianças nascidas só no último mês e nem uma só sobreviveu mais do que uma semana. Um violento turbilhão de neve cegou Hrotrud. Por momentos, perdeu de vista o caminho mal assinalado. Sentiu uma onda de pânico. Já tinha morrido mais do que um aldeão naquele caminho, andando em círculos a pouca distância da sua própria casa. Esforçou-se por se manter direita, enquanto a neve rodopiava à sua volta, envolvendo-a numa paisagem branca. Quando o vento abrandou, mal conseguia vislumbrar o caminho. Continuou a marcha. As mãos e os pés já não lhe doíam; estavam completamente dormentes. Ela sabia o que isso podia significar, mas não podia ligar; era importante manter a calma. Tenho de deixar de pensar no frio.
Lembrou-se da casa onde tinha nascido, uma bela casa com uma herdade próspera, de cerca de seis hectares. Era quente e aconchegada, com sólidas paredes de madeira, muito mais bonita do que as casas dos seus vizinhos, construídas com simples traves de madeira, cobertas de argamassa. Na sala principal, havia uma grande lareira, com o fumo a sair em espiral por uma abertura no telhado. O pai de Hrotrud usava um belo manto de pele de lontra por cima da sua camisa em linho fino e a mãe usava fitas de seda nos seus longos cabelos negros. Hrotrud tinha duas túnicas de mangas largas e um manto da mais pura lã. Lembrava-se de sentir junto à sua pele a maciez e suavidade do tecido fino. Tinha tudo acabado tão depressa. Dois verões de seca e um gelo assassino tinham arruinado a colheita. Havia fome por todo o lado. Na Turíngia, havia boatos de canibalismo. O pai de Hrotrud tinha conseguido poupá-los à fome durante algum tempo, graças à venda ponderada de bens de família. Hrotrud chorou quando levaram os seus mantos de lã. Na altura, pensou que não poderia acontecer nada pior. Tinha oito anos e ainda não se tinha apercebido do horror e da crueldade do mundo.
Abriu caminho através de mais um longo manto de neve, lutando contra uma sensação crescente de atordoamento. Há vários dias que não comia nada. Bem, se tudo correr bem, hoje à noite vou festejar. Talvez possa levar um pouco de presunto para casa, se o cónego ficar satisfeito. A ideia renovou-lhe as energias. Hrotrud chegou a uma clareira. Já conseguia distinguir os contornos enevoados da cabana à sua frente. A neve ali era mais alta, para além do limite das árvores, mas ela seguiu em frente, abrindo caminho com as suas pernas e braços fortes, confiante de que, agora, estava em segurança. Ao chegar à porta, bateu uma vez, depois, entrou logo. Estava muito frio para se preocupar com cortesias. Ao entrar, pestanejou na escuridão. A única janela da cabana tinha sido entaipada por causa do Inverno; a única luz existente vinha da lareira e de algumas velas de cebo espalhadas pelo compartimento. A pouco e pouco, os seus olhos começaram a habituar-se à escuridão e viu dois rapazinhos sentados um junto ao outro perto do lume. A criança já nasceu?, perguntou Hrotrud. Ainda não. Respondeu o rapaz mais velho. Hrotrud murmurou uma pequena oração de acção de graças a São Cosme, patrono das parteiras. Já tinha sido privada do pagamento mais do que uma vez desta maneira, despedida sem um denário, depois de ter tido o trabalho de aparecer. Junto à lareira, despiu os trapos enregelados que lhe revestiam as mãos e os pés, soltando um grito de alarme, ao ver como estavam roxos. Mãe santa, não deixes que o gelo os leve. Não serviria de muito à aldeia ter uma parteira aleijada. Elias, o sapateiro, tinha perdido assim o seu sustento. Depois de ter sido apanhado numa tempestade quando regressava de Mainz, as pontas dos seus dedos tinham escurecido, acabando por cair ao fim de uma semana. Agora, magro e andrajoso, passava a vida encolhido às portas das igrejas, apelando à caridade dos outros para sobreviver». In Donna Woolfolk Cross, A Papisa Joana, 2000, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2010, ISBN 978-972-232-641-4.

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