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«Acordo
com o som de pancadas na porta e uma sensação de desânimo. Ainda tenho o espartilho,
as meias e a combinação. Pelo menos consegui despir o vestido antes de cair num
sono exausto esta manhã. Consigo perceber pelo tom da luz do sol da tarde que dormi
de mais. Será que Kitty já saiu? Olho para o chão. O dinheiro que ganhámos na noite
passada desapareceu. Sento-me na cama de casal empoeirada. Decorámo-la para ficar
com o aspecto de uma cama de dossel, dispondo lençóis e sedas. Mas o colchão é barato.
O enchimento de palha pica-me as pernas quando afasto as cobertas para trás. Abram
a porta!, ordena uma voz. Encolho-me, levando uma mão hesitante à cabeça, que lateja
por causa do vinho de ontem à noite. Depois balanço as pernas para o lado da
cama onde Kitty costuma dormir. Nós só temos um quarto, por isso partilhamo-lo,
embora num ataque de inteligência, eu tenha pregado uma porta falsa e uma moldura
à parede oposta. Dá a impressão de que existe outra divisão. Assim, os convidados
do sexo masculino podem imaginar que Kitty e eu dispomos de um aposento cada uma.
Os meus pés descalços batem contra garrafas de vinho vazias, provocando barulho
e tornando as pancadas na porta ainda mais frenéticas. Abram a porta!
Levanto-me,
alisando a minha combinação de linho branco, para que caia até aos tornozelos.
Os laços do espartilho estão muito apertados e sinto as costelas doridas, por ter
dormido com o espartilho posto. Encaminho-me para a porta, que agora reverbera perigosamente,
devido ao punho que bate do outro lado. Nenhuma mulher decente abriria a porta
vestida como eu estou. Mas isso não é preocupação para uma rapariga como eu. O meu
único pensamento é que ninguém devia ver de graça aquilo que tem um preço. Dou a
volta à chave e as pancadas cessam quando levanto a tranca e abro a porta. Sim?
O meu rosto arvora uma expressão de altivez. O homem do outro lado não se deixa
enganar. O visitante é um tipo grande, musculado e com um rosto gordo. Traja à maneira
simples de um cobrador de dívidas. Cinco guinéus, diz ele, sem preâmbulos. Eu abano
a cabeça, lembrando-me da pilha de dinheiro em falta e que deveria estar junto à
cama. Graças a Kitty, não tenho nada a não ser a minha astúcia. Está à procura da
Kitty, digo. É ela quem tem uma dívida, não eu. O homem faz uma carranca e tira
um rolo de papel com as pontas reviradas. Desenrola-o, lambe os lábios e examina-o
com um dedo gordo como uma salsicha.
Kitty
French e Elizabeth Ward, lê. Ambas fugitivas da casa de mrs. Wilkes, em Mayfair,
Londres, acrescenta, declamando a morada como se se tratasse de algum facto jurídico
de que fôssemos culpadas. Achas que se podem esconder em Piccadilly? Eu paguei a
minha dívida, digo num tom neutro. Antes de sair. Eu não devia nada à casa dela.
E deixaste mrs. Wilkes completamente na penúria?, troçou o homem. Vocês
raparigas mordem a mão que vos alimenta. Tu fugiste, vestindo as roupas que mrs.
Wilkes te forneceu. Essas roupas pertencem-lhe e ela será paga por elas. Ele inclina-se
perto o suficiente para que eu possa sentir o cheiro do tabaco de cachimbo. Sairei
daqui com o dinheiro, ou um vestido para pagar as dívidas, declara. Sinto o medo
entranhar-se no meu estômago. Eu não roubei a roupa, digo, tentando imitar o
tom ousado que Kitty adoptaria. Dou um passo atrás no quarto. O homem aproxima-se
de mim, como se temesse que eu pudesse fugir, embora eu esteja presa nesta pequena
divisão. Vou mostrar-lhe, digo, recuando em direcção ao grande baú onde guardamos
os nossos vestidos. Parto do princípio que hoje Kitty tenha posto o vestido de seda
roubado. Caso contrário, estou prestes a entregar o seu único vestido bonito como
multa a um cobrador de dívidas. Abro o baú. Para meu alívio, não há nada lá dentro
além do meu simples vestido de algodão. Tiro-o para fora». In Joanna Taylor, O Baile de
Máscaras, 2015, Edições ASA II, 2016, ISBN 978-989-233-518-6.
Cortesia de EASA/JDACT