quinta-feira, 23 de março de 2017

O Apogeu da Cidade Medieval. Jacques le Goff. «Em Clermont, já no primeiro foral que conhecemos, em 1219, o conde Guy II faz estipular que, em troca do direito para a comunidade urbana»

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A cidade e o exterior. As muralhas
«(…) Em Toulouse, a noção de uma comunidade urbana englobando cité e burgo aparece já em 1141 e ela passa a chamar-se Tolosa, Toulouse. Do mesmo modo que os heróis cavaleirescos de Chrétien Troyes aprendem a sua identidade pela revelação do seu nome, a cidade se revela a si mesma e se afirma perante as outras pela proclamação do seu nome. A cidade adoptou o nome de cité. Tolosa passa a ser, como dizem os documentos, urbs et suburbium, a cidade e o subúrbio, a cidade e o burgo. A partir de 1190, Tolosa é empregado como termo geral. A consciência da entidade global tornara-se bastante forte para não exigir a cada passo a evocação de seus constituintes. Foi encavalada no local do velho muro romano que separava as duas aglomerações que se construiu a casa comum. Em 1222, os cônsules promulgam um texto que organiza um conselho comum, composto por metade dos cônsules de cada comunidade. Quaisquer que tenham sido para a tomada de consciência dos habitantes as consequências da construção e da existência de uma ou várias muralhas, a importância de seu papel militar é evidente. Ainda aqui o funcional e o simbólico, o militar e o político estão estreitamente ligados. Veremos mais adiante a incidência da edificação das muralhas sobre as finanças urbanas. A guarda e a manutenção desses muros e das suas portas constituiu desde logo um aspecto da luta dos novos cidadãos para assumir eles próprios as suas responsabilidades. Mas também, sem que seja possível distinguir o que prevaleceu, a vontade dos citadinos ou o desejo do senhor ou do rei, tem-se a impressão de que o desejo de livrar-se desse encargo de vigilância levou esses senhores ou o rei a conceder mais facilmente ou mais cedo, contra o seu compromisso de vigiar as portas e os muros, outros privilégios aos habitantes das cidades. Por outro lado, às vezes vêem-se também estes, longe de reivindicar essa função de espreita, vigilância e manutenção, tentando isentar-se dela como do serviço militar.
Em Clermont, já no primeiro foral que conhecemos, em 1219, o conde Guy II faz estipular que, em troca do direito para a comunidade urbana de reunir-se e de fazer o que lhe compete, os cidadãos (cives) deverão vigiar os muros e as torres e limpar os fossos. Em Montpellier, a vigilância da muralha parece caminhar de par com a organização dos ofícios. Desde 1204 a guarda das portas é repartida entre trinta desses ofícios. Ainda aqui aparece a ambiguidade da relação cidade/campo. A muralha define um espaço de exclusão, o do mundo rural, mas também é feita para acolher eventualmente, em caso de guerra, habitantes desse mesmo mundo. A função pode inverter-se e, em relação à população rural, a muralha pode definir, no interior, um espaço de refúgio, em conformidade, aliás, com uma das grandes imagens da cidade, a cidade do refúgio, que o Antigo Testamento lega à cidade medieval. Essa função tinha sido essencial nas sauvetés. Por conseguinte, os camponeses, eventuais beneficiários da protecção da muralha urbana, são chamados com bastante frequência, ao que parece, a participar de sua vigilância.
Em Poitiers, os aldeões dos povoados vizinhos colaboravam para a manutenção da muralha e participavam do serviço de espreita. Ressaltou-se que os 6km de muralhas, encerrando uma população relativamente pequena (15.000 habitantes?), requeriam, para ser eficazes, um grande número de vigias, de reparadores e, em certas ocasiões, de defensores. Durante o nosso período as muralhas tiveram relativamente pouca utilidade. A paz prevaleceu quase sempre sobre a guerra e o banditismo organizado em larga escala, como durante a Guerra dos Cem Anos. No entanto as empresas de Filipe Augusto contra os ingleses (conquista da Normandia) e os flamengos (campanha de Bouvines), as expedições militares, sobretudo dos senhores do Norte e, depois, dos reis Luís VIII e São Luís contra as populações meridionais, e enfim as campanhas de Filipe, o Belo, contra os ingleses no Sudoeste e contra os flamengos no Nordeste foram marcadas por um certo número de sítios de cidades». In Jacques le Goff, O Apogeu da Cidade Medieval, 1980, Livraria Martins Fontes Editora, 1989, 1992, ISBN 978-853-360-127-1.

Cortesia de LMartinsFontesE/JDACT