quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

31 com os Poetas. Final do ano de 2015. «… aquilo que a gente sonha sem saber de sonhar, aquela boca risonha que nunca nos quis beijar, aquela vaga ironia que uns olhos tiveram um dia para a nossa emoção; tudo isso nos dá o agrado, flores que flores são nos jardins do passado…»

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Feliz Ano Novo. A juventude sucede ao ano velho…

A Bárbara escrava
«Aquela cativa
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbara não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo,
e, pois nela vivo,
é força que viva».
Luís de Camões (1524?-1580), Endechas

«… tenho sono talvez porque toquei onde sinto o animal que abandonei e o sono é uma lembrança que encontrei…»

«Aquela nunca vista formosura,
aquela viva graça e doce riso,
humilde gravidade e alto aviso,
mais divina que humana real brandura.

Aquela alma inocente e sábia e pura
que entre nós cá fazia um paraíso,
ante os olhos a trago e lá a diviso
no céu triunfar da morte e sepultura.

Pois por quem choro, triste? Por quem chamo
sobre esta pedra dura a meus gemidos,
que nem me pode ouvir nem me responde?

Meus suspiros nos céus sejam ouvidos;
e enquanto a clara vista se me esconde,
seu despojo amarei, amei e amo».
António Ferreira (1528-1569), Soneto

«… tenho sono talvez porque toquei onde sinto o animal que abandonei e o sono é uma lembrança que encontrei…»

«De Amor escrevo, de Amor falo e canto;
e se minha voz fosse igual ao que amo,
esperara eu sentir na que em vão chamo
piedade, e na gente dor e espanto.

Mas não há pena, ou língua, ou voz, ou canto
que mostre o amor por que eu tudo desamo,
nem o vivo fogo em que me sempre inflamo,
nem de meus olhos o contínuo pranto.

Assim me vou morrendo, sem ser crida
a causa por que em vão mouro contente,
nem sei se isto que passo é vida ou morte.

Mas inda da que eu amo fosse ouvida
e crida minha voz. e da vã gente
nunca entendida fosse minha sorte».
Pêro Andrade Caminha (152?-1589), Soneto

«… só um crepúsculo do mundo deixe chegar à sonolência que se sente; e a alma se desfaça como um peixe atado pelos dedos de um demente…»

«Tão alto me alevanta a fantasia
ajudada a esperança do desejo,
que a vista perco já, donde me vejo,
daquele estado vil, em que me via.

Mas pretende da inveja a vã porfia
a luz escurecer, por que me rejo,
e derribar com seu rigor sobejo
de tão alto lugar minha ousadia.

Mas vós, senhora, pois que meu cuidado
está seguro em vós, com segurança
lhe deveis sustentar seu alto assento

e se haveis, que merece castigado:
a pena é minha, e a culpa da esperança
que as asas empenou ao pensamento».
Fernão Álvares Oriente (1540-1600), Soneto

«… só um crepúsculo do mundo deixe chegar à sonolência que se sente; e a alma se desfaça como um peixe atado pelos dedos de um demente…»

Crisfal
«Antre Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábida é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n’água salgada,
houve um pastor e pastora,
que com tanto amor se amaram
como males lhe causaram
este bem, que nunca fora,
pois foi o que não cuidaram.

A ela chamavam Maria
e ao pastor Crisfal,
ao qual, de dia em dia,
o bem se tornou em mal,
que ele tão mal merecia.
Sendo de pouca idade,
não se ver tanto sentiam
que o dia que não se viam,
se via na saudade
o que ambos se queriam.

Algumas horas falavam,
andando o gado pascendo;
e então se apascentavam
os olhos, que, em se vendo,
mais famintos lhe ficavam.
E com quanto era Maria
pequena e, tinha cuidado
de guardar melhor o gado
o que lhe Crisfal dizia;
mas, em fim, foi mal guardado;

Que, depois de assim viver
nesta vida e neste amor,
depois de alcançado ter
maior bem para maior dor,
em fim se houve de saber
por Joana, outra pastora,
que a Crisfal queria bem;
(mas o bem que de tal vem
não ser bem maior bem fora,
por não ser mal a ninguém).
[…]
Cristóvão Falcão (1515-?), Crisfal

«… não sei o que fiz da vida, nem o quero saber; se a tenho por perdida, sei eu o que é perder? Mas tudo é música se há alma onde a alma está, e há um vago, suave, sono, um sono morno de agrado, quando regresso, dono, aos jardins do passado…»

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ISBN 978-972-201-944-6

31 na Literatura. O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «Repetem que o seu reino não é desse mundo, e metem as mãos em tudo o que podem roubar. A civilização não alcançará a perfeição enquanto a última pedra da última igreja não tiver caído sobre o último padre, e a Terra estiver livre dessa corja»

Cortesia de wikipedia e jdact

Quem sou? 24 de Março de 1897
«(…) Agradava a napolitanos e sicilianos, eles mesmos mulatos não por erro de uma mãe meretriz, mas pela história de gerações, nascidos de cruzamentos entre levantinos desleais, árabes suarentos e ostrogodos degenerados, que herdaram o pior de seus antepassados híbridos: dos sarracenos a indolência, dos suevos a ferocidade, dos gregos a irresolução e o gosto por se perder em tagarelices até procurar cabelo em ovo. Quanto ao resto, basta ver os moleques que em Nápoles encantam os estrangeiros estrangulando-se com espaguetes que enfiam goela abaixo com os dedos, lambuzando-se de tomate estragado. Não os vi, creio, mas sei. O italiano é inconfiável, mentiroso, vil, traidor, sente-se mais à vontade com o punhal que com a espada, melhor com o veneno que com o fármaco, escorregadio nas negociações, coerente apenas em trocar de bandeira a cada vento, e eu vi o que aconteceu aos generais bourbónicos assim que apareceram os aventureiros de Garibaldi e os generais piemonteses. É que os italianos se modelaram com base nos padres, o único governo verdadeiro que já tivemos desde que aquele pervertido do último imperador romano foi sodomizado pelos bárbaros porque o cristianismo havia debilitado a altivez da raça antiga. Os padres... Como os conheci? Na casa do avô, creio; tenho a obscura lembrança de olhares fugidios, dentaduras estragadas, hálitos pesados, mãos suadas que tentavam acariciar-me a nuca.
Que nojo. Ociosos, pertencem às classes perigosas, como os ladrões e os vagabundos. O sujeito faz-se padre ou frade só para viver no ócio, e o ócio é garantido pelo número deles. Se fossem, digamos, um em mil almas, os padres teriam tanto que fazer que não poderiam ficar de papo para o ar comendo, capões. E entre os padres mais indignos o governo escolhe os mais estúpidos, e nomeia-os bispos. Começa a tê-los ao seu redor assim que nasce, quando o baptizam; reencontra-os na escola, se os seus pais tiverem sido suficientemente carolas para confiá-lo a eles; depois, vêm a primeira comunhão, o catecismo e a crisma; lá está o padre no dia do seu casamento, a lhe dizer o que deve fazer no quarto e no dia seguinte no confessionário, a perguntar-lhe, para se poder excitar atrás da treliça, quantas vezes você fez aquilo. Falam-lhe do sexo com horror, mas todos os dias os vê sair de um leito incestuoso sem sequer lavar as mãos, e vão comer e beber o seu Senhor, para depois cagá-lo e mijá-lo. Repetem que o seu reino não é desse mundo, e metem as mãos em tudo o que podem roubar. A civilização não alcançará a perfeição enquanto a última pedra da última igreja não tiver caído sobre o último padre, e a Terra estiver livre dessa corja.
Os comunistas difundiram a ideia de que a religião é o ópio dos povos. É verdade, porque serve para arrefecer as tentações dos súbditos, e se não existisse a religião haveria o dobro de pessoas sobre as barricadas, ao passo que nos dias da Comuna não eram suficientes e foi possível dispersá-las sem muito trabalho. Mas, depois que escutei aquele médico austríaco falar das vantagens da droga colombiana, eu diria que a religião é também a cocaína dos povos, porque a religião impeliu e impele às guerras, aos massacres dos infiéis, e isso vale para cristãos, muçulmanos e outros idólatras, e, se os negros da África se limitavam a massacrar-se entre si, os missionários os converteram e os fizeram tornar-se tropa colonial, adequadíssima a morrer na primeira linha e a violar as mulheres brancas quando entram numa cidade. Os homens nunca fazem o mal tão completa e entusiasticamente como quando o fazem por convicção religiosa. Os piores de todos são certamente os jesuítas. Tenho como que a sensação de lhes haver pregado algumas peças, ou talvez tenham sido eles que me fizeram mal, ainda não recordo bem. Ou talvez tenham sido os seus irmãos carnais, os maçons. Como os jesuítas, apenas um pouco mais confusos. Aqueles ao menos têm lá uma teologia e sabem como manobrá-la, esses a têm em demasia e nisso perdem a cabeça. Dos maçons, falava-me o meu avô. Com os judeus, eles cortaram a cabeça do rei. E geraram os carbonários, maçons um pouco mais estúpidos porque se deixavam fuzilar, antes, e depois deixaram cortar a cabeça por terem errado ao fabricar uma bomba ou tornaram-se socialistas, comunistas e communards; isto é, partidários da Comuna. Todos no muro de fuzilamento. Bom trabalho, Thiers. Maçons e jesuítas. Os jesuítas são maçons vestidos de mulher. Odeio as mulheres, pelo pouco que sei delas. Durante anos, fui obsecado por aquelas brasseries à femmes, onde se reúnem malfeitores de todas as categorias. Piores do que as casas de tolerância. Essas ao menos têm dificuldade em se instalar, por causa da oposição dos vizinhos, ao passo que as cervejarias podem ser abertas em toda parte porque, dizem, são apenas locais onde se vai para beber. Mas se bebe no térreo e pratica-se o meretrício nos andares superiores. Toda cervejaria tem um tema, e os trajes das moças adaptam-se a ele; aqui encontra garçonetes alemãs, ali diante do Palácio de Justiça outras em toga de advogado. Por outro lado, bastam os nomes, como Brasserie du Tire-Cul, Brasserie des Belles Marocaines ou Brasserie des Quatorze Fesses, não longe da Sorbonne. São quase sempre mantidas por alemães; aí está um modo de minar a moralidade francesa». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr, Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

Cortesia de ERecord/JDACT

31 no Século XVIII. O Crime dos Illuminati. 1787. César Vidal. «À resistência a esse plano revolucionário, libertador e cidadão, teriam dito em Paris, eles chamavam ‘zecutar’ justiça. Com certeza, nem Marat, nem Danton nem Robespierre estariam de acordo com aquele julgamento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Os Filhos da Luz. Baviera, 1787
«(…) Demoraram apenas alguns minutos para reunir as cordas, fazer um nó corrediço e colocá-las no pescoço dos presos. Antes que Karl conseguisse ver o que estava acontecendo, os homens eram arrastados como se fossem cães levados pela coleira. Levantando uma poeirada seca e amarela, saíram do povoado, enquanto cuspiam ameaças e insultos sobre os revolucionários. Parem! Parem! Karl tentou ver quem tinha dado a ordem detendo aquela massa no meio da qual ele se movia procurando não se ver envolvido. Não conseguiu. Saia aí do meio, monsieur Blondel, escutou o homem seco dizer. O povoado vai zecutar justiça. O povoado vai zecutar justiça... Sim, a gramática era deplorável, mas as ideias não poderiam ser mais claras. Eles, a mulher bonita, a velha, o homem seco, os que tinham fornecido as cordas, o rapaz que tinha desejado ter uma guilhotina..., todos eles representavam o povoado e não iam permitir que os homens de Paris lhes impusessem a sua revolução, essa revolução que começava levando os produtos do campo e em seguida queimava igrejas e plantava uma guilhotina na praça do lugar. À resistência a esse plano revolucionário, libertador e cidadão, teriam dito em Paris, eles chamavam zecutar justiça. Com certeza, nem Marat, nem Danton nem Robespierre estariam de acordo com aquele julgamento e, certamente, teriam sérias restrições em considerar povo aqueles que estavam dispostos a enfrentá-los. Reiniciaram a caminhada. Karl então reparou num homem vestido de maneira modesta, embora melhor do que o resto dos camponeses, afastado à beira da estrada. Tinha os olhos avermelhados e o horror estampado no rosto. Devia ser o tal Blondel. Bem que ele gostaria de sair do tumulto e lhe dizer que não se preocupasse, que tinha feito o possível, que até tinha chegado às raias do heroísmo com o seu comportamento. Não fez isso, porque a vontade de saber onde aquilo ia dar era mais poderosa naquele momento do que qualquer outra consideração.
Ali... Ali! A multidão acelerou o passo como se tivesse acabado de ouvir um ensalmo. Karl também apertou o passo para evitar ver-se envolvido. Foi assim que chegou, suarento e sufocado, até uma esplanada. Com certeza, aquele terreno devia ser bonito em circunstâncias normais. Era uma pradaria branda e suave que ficava muito perto de uma pequena floresta, Sim, seguramente os aldeões deviam-se reunir ali em dias de festa para beber e se divertir. Era o lugar ideal. Venham! Ali mesmo! Karl viu agora com toda a nitidez o lugar que o outro apontava. Tratava-se de um pequeno grupo de árvores robustas, circunspectas, transpirando dignidade. Pareciam estar ali desde a aurora dos tempos para cumprirem a sua missão solene e especial, de servirem de patíbulos aos que se tinham atrevido a arrasar o que aqueles que arrancavam o sustento da mãe Terra consideravam mais sagrado. Quase como se fossem um só homem, meia dúzia de lavradores atiraram as cordas até à copa das árvores. As sogas não chegaram a tocar o chão. Antes que terminassem de cair, seis grupos de pessoas, orquestrados como se tivessem ensaiado a execução dezenas de vezes, apoderaram-se da ponta e começaram a puxar com todas as suas forças. Karl observou horrorizado a maneira como os corpos dos soldados se elevavam no ar enquanto os seus rostos se congestionavam pela pressão que a soga exercia nas suas gargantas. Era duvidoso que os enforcassem. Seguramente, em vez dessa morte quase rápida que vem determinada pela fractura da nuca, sofriam os estertores do estrangulamento. De facto, eles retorciam-se como peixes tirados da água, enquanto os seus pés se separavam do chão.
Teve a sensação de que a agonia se prolongava eternamente, mas, na verdade, ela foi rápida. Apenas um deles, o que parecia mais jovem, a vida pareceu resistir à ideia de abandonar um corpo que tinha vivido pouco. A batalha estava perdida de antemão e, além do mais, a conclusão acelerou-se quando uma anciã se agarrou aos pés do réu e puxou. Não conseguia entender a dureza daquelas mulheres que tinham ultrapassado a casa dos sessenta anos. A que poderia obedecer aquela insensibilidade, aquela ânsia, aquela falta de piedade? Talvez não fosse possível generalizar e cada caso acabasse sendo diferente. Para as mulheres, que tinha visto em Paris entusiasmadas com os estragos causados pela guilhotina, talvez aquelas execuções fossem apenas uma confirmação de que a injustiça, real ou imaginária, estava sendo punida: aplaudiam uma espécie de equidade cósmica implantada sobre rios de sangue. Para as mulheres daquele povoado, o motivo certamente era diferente: deviam estar convencidas de que quem se atrevesse a destruir a religião, o fruto do duro trabalho quotidiano, a família e a paz só poderia ser digno de uma morte rápida. Contemplou por um instante os seis corpos. Sim, estavam mortos. Quanto a isso, não havia a menor dúvida. Mesmo porque pelas pernas das suas calças, como um testemunho sujo e humilhante, escorriam fios de urina e excrementos.

Os Filhos da Luz. Baviera 1775
Steiner inclinou-se sobre os restos mortais do jovem. Custou-lhe muito reprimir uma mistura de asco e mal-estar que tinha-se agarrado ao seu pescoço como se fosse um cachecol de lã. Apesar dos anos de serviço que já tinha na polícia de Ingolstadt, não conseguia controlar uma certa aversão por cadáveres. Descobrir ladrões, vigiar suspeitos, estabelecer a cada passo seguido para urdir uma fraude engenhosa e mesmo redigir relatórios e instruir processos lhe pareciam tarefas toleráveis, aceitáveis, até divertidas. No entanto, não conseguia acostumar-se ao exame de um cadáver. Já se tinha perguntado mil vezes qual era o motivo de sua aversão e nunca conseguia elucidá-lo completamente. Por certo, havia o aspecto físico da decomposição da carne. Por mais que o catecismo se referisse a ela ou a lembrasse pontualmente na celebração da quarta-feira de cinzas, Steiner não conseguia familiarizar-se com o facto de que um corpo que ontem respirava, que até se mostrava viçoso e saudável, acabasse reduzido à condição de carniça pestilenta. Sentia isso, sentia-o na alma, mas não conseguia acostumar-se. No entanto, o seu desconforto asfixiante e indesejável não se limitava ao aspecto da decomposição de órgãos e músculos. Não, de forma alguma, quem lhe dera fosse assim. Na verdade, o que lhe causava mais desgosto era a inegável evidência de que a morte significa um final realmente terrível e que não existia a certeza de que tudo não terminasse no meio de vermes e de putrefacção. Certamente, havia os ensinamentos religiosos, e a afirmação do Credo sobre a ressurreição da carne, e até os diferentes meios oferecidos pela Santa Madre Igreja para facilitar a sorte dos condenados ao purgatório. Tudo aquilo ele conhecia e, é claro, acreditava». In César Vidal, O Crime dos Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro Publicações S.A., 2006, ISBN 857-316-6491-3.

Cortesia de RDumará/JDACT

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A Cultura Integral do Indivíduo. Problema Central do Nosso Tempo. 1933. Bento de Jesus Caraça. «À falência completa no campo moral, vem juntar-se, como é do conhecimento de todos, a falência total no campo económico»

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«(…) Contra esse regime social, levantam-se de todos os lados os protestos e as flagelações; vamos ver dois exemplos. Ouçamos, em primeiro lugar, o que a este respeito diz Harold Laski, professor da Universidade de Londres, no seu livro Gramática da Política: podem resumir-se brevemente os resultados deste sistema. A produção efectua-se com desperdícios e sem plano conveniente. As comodidades, os serviços necessários à vida da comunidade, não são repartidos de modo a satisfazer as necessidades ou a produzir o máximo de utilidade social. Construímos cinemas sumptuosos e temos falta de casas de habitação. Gastamos em navios de guerra o dinheiro necessário para as escolas. Os ricos podem gastar num só jantar o salário semanal de um operário, enquanto o operário não pode enviar à escola os filhos insuficientemente alimentados. Uma rapariga rica gastará no seu primeiro vestido de baile mais que o salário anual dos trabalhadores que o fizeram. Em suma, produzimos comodidades inúteis e distribuímo-las sem atender às necessidades sociais. Mantemos num parasitismo ocioso uma vasta classe cujos gostos exigem que capital e trabalho concordem em satisfazer necessidades sem nenhuma relação com os interesses humanos. E esta classe não se põe à margem da comunidade. Como tem o poder de tornar as suas exigências eficazes, estimula a imitação servil daqueles que procuram misturar-se a ela. A riqueza transforma-se em padrão de medida do mérito; e a recompensa da riqueza é a capacidade de fixar os níveis daqueles que procuram adquiri-la. Esses níveis são fixados, não para satisfação de um fim moral, mas do desejo de ser rico. Os homens podem começar a adquirir bens para assegurar a sua existência, mas continuam a adquirir para alcançar a distinção que lhes confere a propriedade. Ela satisfaz a sua vaidade e o seu amor do poder; permite-lhes harmonizar a vontade da sociedade com a sua. Resulta daqui o que pode logicamente esperar-se de uma tal ambiência. Produzem-se bens e serviços, não para os utilizar, mas para tirar da sua produção elementos de posse. Produz-se para satisfazer, não exigências legítimas, mas aquelas que são susceptíveis de render. Aniquilam-se as fontes naturais de riqueza. Falsificam-se as comodidades. Lançam-se negócios fraudulentos. Corrompem-se os legisladores. Falsificam-se as fontes do saber. Realizam-se alianças artificiais para aumentar o preço das comodidades. Exploram-se, com uma crueza por vezes terrível, as raças atrasadas da humanidade...
Isto diz o professor Laski. Demos agora a palavra a Oliveira Salazar, o qual, num discurso recentemente pronunciado em Lisboa, menos violento nos termos, não formulou, no entanto, uma crítica menos condenatória. São suas estas palavras, que transcrevo do Século de 17 de Março de 1933: nós adulterámos o conceito de riqueza, desprendemo-la do seu fim próprio de sustentar com dignidade a vida humana, fizemos dela uma categoria independente que nada tem que ver com o interesse colectivo nem com a moral e supusemos que podia ser finalidade dos indivíduos, dos Estados ou das Nações, amontoar bens sem utilidade social, sem regras de justiça na sua aquisição e no seu uso. Nós adulterámos a noção de trabalho e a pessoa do trabalhador... Pois muito bem. É para sustentar isto que se cria e desenvolve, por toda a parte, um aparelho repressivo de cuja actuação brutal todos os dias temos novas afirmações. À falência completa no campo moral, vem juntar-se, como é do conhecimento de todos, a falência total no campo económico. A proletarização de vastas camadas da população de todo o mundo, a destruição dos meios de consumo, que a todo o momento se realiza, no meio de povos a quem falta o indispensável, a existência de dezenas de milhões de desempregados, são factos que falam bem eloquentemente por si e dispensam, por isso, comentários.
Nunca se viu um anquilosamento tão completo e tão rápido de uma classe dirigente e nunca se viu também um tão grande apego ao poder. É que a crise atinge os fundamentos da orgânica. Por isso, como dizia acima, a luta é mais crua do que nunca. É também mais ampla do que nunca, precisamente porque os alicerces estão atingidos. Há alguns séculos, os destinos de um agrupamento social jogavam-se no próprio local em que o agrupamento vivia. Hoje, o futuro de nós, portugueses, joga-se tanto em Portugal, como em Nova York ou nas planícies do norte da China. O desenvolvimento do nacionalismo foi a obra do século XIX, o do internacionalismo será a do século XX. Estas palavras, proferidas há pouco na Sorbonne por Lord Lytton que, por encargo da Sociedade das Nações, presidiu à comissão que foi à China investigar das causas do conflito sino-japonês, merecem ser meditadas pelos adeptos do nacionalismo. Não por aqueles para quem a pátria é um balcão de compra e venda, esses não precisam de pensar, nem têm tempo para isso; mas pelos que, nem estarem num campo errado, merecem menos consideração e respeito, desde que nele militem com boa fé e desinteresse. Poucas questões há que tenham sido tão mal postas como esta do nacionalismo e isso não admira, pois foram sempre as águas turvas o ambiente propício para as manobras de certos pescadores... Se ser nacionalista é, reconhecendo a existência de grupos étnicos com características próprias, trabalhar pelo desenvolvimento desses grupos (nações), defender e propulsionar a autonomia das suas instituições de vida e cultura, num largo espírito de colaboração com os outros grupos étnicos, como pode deixar de ser-se abertamente, francamente, nacionalistas?» In Bento de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939.

Cortesia de Seara Nova/JDACT

As Obras do Diabinho da Mão Furada. António José Silva. «… que eram poetas que se condenaram por darem epítetos às belezas humanas, chamando-lhes divinas, angélicas, idolatradas e soberanas, e outras semelhantes loucuras; e que por mais que se quiseram desculpar…»

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«(…) E os que tinham as varas clamavam: socorro! Socorro! Da parte de el rei, deem vossas senhorias denúncia destes desacatos aos ministros reais, senhores escrivães, para que se seja dado o merecido castigo! E isto diziam, continuamente, mas quanto eles mais gritavam, mais os demónios lhes davam, dizendo-lhes: … varas, que por ambições de interesse e de cobiça mediram mal a justiça, merecem varejões. Quien tal hace, que tal pague (Cá se fazem, cá se pagam), diziam os demónios, que aqui não conhecemos nem rei nem roque. Perguntou o Soldado ao Diabinho que gente era aquela e ele respondeu-lhe que eram os alcaides (juízes) e meirinhos, (oficiais da justiça; polícias) e os que estavam por detrás os seus escrivães, guardas e porteiros, que se tinham condenado por fazerem mal os seus ofícios, e que, por terem sido instrumento da sua condenação as varas e os poderes delas, davam-lhe agora por tormento as pancadas daquelas grandes varas. Noutra câmara viu o Soldado algumas pessoas com expressões graves, sentadas em tribunais asquerosos, a quem muitos espíritos malignos estavam a fazer fogueiras de papel queimado e a abrasarem-nos com o fumo e o fogo lento, enquanto lhes diziam: … o interesse e o respeito a tal pena a causa deram, pois na vida vos fizeram fazer de torto direito. E, perguntando o Soldado ao seu fiel companheiro quem eram os defumados este disse-lhe que aqueles eram alguns ministros, que se tinham condenado por terem dado sentenças injustas, por paixões ou corrupção; e que aqueles papéis com que os ofendiam significavam os feitos delas, porque em todos os estados havia maus e bons. Noutra parte viu o Soldado alguns sujeitos sentados e ao redor deles muitos demónios atroando-lhe os ouvidos com disformes buzinas e dizendo-lhes de vez em quando este quarteto: … ouvidos que ouvir na vida não quiseram pretendentes, no inferno as tristes buzinas ouvirão eternamente.
E perguntando o nosso Soldado quem eram, respondeu o seu companheiro que eram os ministros que por fecharem as portas e os ouvidos aos pretendentes (arguidos) se condenaram. Admirado estava o Soldado por ver tal espectáculo e não conseguia convencer-se que fosse verdadeiro, julgando ser outra visão fantástica como a da fingida ponte, pois não se podia conceber que de homens cristãos e honrados coubesse tais desacertos. Ainda noutra câmara apareceram-lhe outras figuras a folhear grandes livros que alguns demónios lhe tiravam das mãos de vez em quando, e davam-lhes com eles às pancadas, dizendo-lhes estes dois, tão sábios e exemplares, epigramas: … folheais sem descansar os textos com desprazeres, pois os vossos maus pareceres vos fazem aqui penar, padeceis a infernal ira, pois fazeis com maldade ou da mentira verdade ou da verdade mentira. Perguntou o Soldado ao companheiro endiabrado quem eram aqueles. Ele respondeu-lhe que eram advogados que se condenaram por irem procurar textos para trapaças que queriam sustentar os seus constituintes pelo interesse que dele recebiam, mesmo entendendo que era prejuízo para a justiça das partes, e que em pena disso dava-se-lhes o tormento de estarem sempre a folhear aqueles livros com que os espancavam de vez em quando. A estes seguia-se outro conclave de pessoas muito esfarrapadas, rotas e mal vestidas, uns muito pensativos e sonhadores, outros mordendo as unhas e outros dando palmadas nas testas, fazendo gestos no ar como se fossem doidos, e atrás deles alguns demónios dando-lhe a seguinte vaia nestes dois quartetos: … pródigos, que despendendo tanto ouro e tanta prata, tantos rubis e diamantes, tantas pérolas e esmeraldas, encarecendo belezas que se hão-de tornar em nada, e que terão no fim da vida apenas uma mortalha!
Perguntando o Soldado ao seu companheiro da mão furada que gente era aquela, este respondeu-lhe que eram poetas que se condenaram por darem epítetos às belezas humanas, chamando-lhes divinas, angélicas, idolatradas e soberanas, e outras semelhantes loucuras; e que por mais que se quiseram desculpar, dizendo que era ornato e exaltação da poesia as hipérboles daquelas lisonjas, não lhes foi aceite a desculpa. Aqueles que ali vês mais pensativos estão loucos, buscando conceitos no entendimento para um texto poético no qual diz que Plutão condenou o rapto de Prosérpina, feito por ele próprio, (Plutão, Hades, para os Gregos, era, de acordo com a mitologia romana, o deus do mundo inferior e senhor da terra dos mortos; segundo a mitologia, apaixonou-se por Prosérpina, Perséfone para os Gregos, e quando a viu, um dia, sozinha a colher flores num prado, irrompeu do fundo da terra, raptou-a e levo-a para o seu reino onde casou com ela e fê-la rainha do submundo; diz ainda a mitologia que o rapto de Prosérpina causou grande aflição ao mundo dos homens pois Prosérpina era filha de Ceres, Deméter, para os Gregos, a deusa da natureza e da fertilidade, e esta ficou de tal maneira inconsolável com a perda da filha que o mundo, antes eternamente ameno e florido, ficou estéril e mergulhado em frio e gelo; perante tal calamidade Júpiter, Zeus, para os Gregos, ordenou que Plutão deixasse que Prosérpina fosse para junto da mãe durante seis meses ao ano enquanto os outros seis permaneceria no submundo; deste acordo nasceram as diferentes estações do ano) e os que vês a bater na testa e a morder as unhas estão a pensar em consoantes para os versos que já começaram». In António José Silva (1705-1739), As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A Primeira Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN 978-989-817-496-3.

Cortesia de LLivros/JDACT

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Poetisas Portuguesas. Antologia. Nuno Cardoso. «Saudade, causa tanta vez, ainda, a própria dôr, a sensação medonha. Mas essa é, a que provem risonha, do recordar de uma ilusão infinda. Saudade, encanto e lagrimas…»

jdact e wikipedia

Conforme o original

Antologia
Virginia C. Silva Agoas
«(…) Faleceu contando apenas 27 anos de idade. Era filha do empregado do Ministério da Fazenda, Agoas. O seu volume de versos, Outr’ora, prefaciado por Candido Figueiredo, foi comprado por mim em plena rua, onde se vendia por preço ridículo, como sucede a tantas outras obras. O facto apontado é a prova evidente do pouco interesse que uma bôa parte dos Portuguezes tem por assumptos literários. E' com satisfação, que presto homenagem á sua auctora, que em vida, tão assidua e distinctamente colaborou no interessante jornal Os Echos da Avenida que já conta bastantes anos de existência e no qual se encontram as biografias e retratos de pessoas mais em evidencia no nosso meio literário. Virgínia Agoas colaborou também nos jornaes A Tarde, Folha do Sul, de Montemór-o-Novo, etc. Num certapien literário iniciado pelos Echos da Avenida, em 1906, uma das suas quadras foi das mais votadas. Esta Poetisa tinha grande vocação para a pintura e para a musica. Escreveu ainda, um livro de contos, Silvas, prefaciado por Carlos Malheiro Dias e que á semelhança do que aconteceu com o seu volume de versos, foi publicado postumamente.

Saudade
«Saudade tem-se de uma rosa linda
que a gente vê desfolhar tristonha,
saudade tem-se, quanto mais se sonha…
De um bem que morre… de um prazer que finda.

Saudade, causa tanta vez, ainda,
a própria dôr, a sensação medonha.
Mas essa é, a que provem risonha,
do recordar de uma ilusão infinda.

Saudade, encanto e lagrimas, existe
de um sonho bom de um sonho belo ou triste,
e tudo envolve em sua roxa côr.

Saudade!, ai é sentir todo um passado
nitidamente e sempre reavivado,
é derradeira pagina do Amor».
Virgínia Agoas. Outr’ora, versos póstumos. Porto, 1913

Imaculada
«Um primor de arte antiga e requintada
essa medalha de subtis lavores,
que eu encontrei um dia abandonada
no banco de um jardim, por entre flores.

Na tampa de oiro, oval e cinzelada,
exibia uns idilios de pastores,
abraçando-se á luz da madrugada,
nos mais simples e candidos amôres.

Encontrei-a, e uma intensa vontade
levou-me a abril-a, cheia de anciedade,
essa medalha antiga e cinzelada…

Vi então, mais formosa do que Ester
um retrato de deusa, ou de mulher,
e uma palavra só: Imaculada!»
Virgínia Agoas. Outr'ora

Dormir. Esperar…
«Dormir, dormir, esquecer…
Coisa boa, que inda existe!
Dormir é quasi morrer,
allivio de quem é triste.

O tormento mais amargo,
o mais luminoso amor,
tudo cae n’esse letargo,
sempre pacificaôr!

Dormir! A paz para a alma!
Tréguas para qualquer dôr!
Descanso para o sentir!

Vaga, que instantes acalma!
Morte efémera do amôr
Esquecer… Dormir, dormir!»
Virgínia Agoas. Outr'ora

«No calvário espinhoso d’esta vida,
vou caminhando em busca de uma luz
que me será depois, na despedida,
derradeiro clarão, deposta a cruz».
Virgínia Agoas. Outr'ora

In Nuno Catarino Cardoso, Poetisas Portuguesas, Prefácio, Antologia contendo dados de 106 poetisas, Livraria Scientífica, Lisboa, 1917, Library University of Toronto, 1969.

Cortesia de LScientífica/PCardoso/JDACT

Poetisas Portuguesas. Antologia. Nuno Cardoso. «A cabeça descoberta e a chuva tão miudinha… E ella a rir, travessa e esperta, pára na rua, deserta, e os pés na lama chapinha. O cabello a desfrizar-se com a chuva miudinha…»

jdact e wikipedia

Conforme o original!

Antologia
Maria Anna Achioli
«Maria Anna Achioli nasceu em Torres Vedras. É filha de Lia de Magalhães Collaço, da Casa de Condeixa e de Fonseca Achioli, descendente de uma família nobre e ilustre de Florença. É, portanto, Maria Anna Achioli bisneta dos condes de Condeixa e sobrinha dos condes d’Avilez. Maria Anna Achioli, apezar de muito nova, tem já a sua vida esmaltada por titulos de valor literario e artístico. Obteve 20 valores no seu exame do quinto ano de portuguez, no liceu. E na pintura foi discipula dilecta e notável de madame Zoé Wautelet Batalha Reis. As suas poesias são tão singelamente naturaes, tão impregnadas de candura, tão filhas de um grande coração, que bem se encarregam essas obras de iniciarem o alvorecer de uma vocação poética de primeira ordem.

Chapinhando
«Ao de leve, na vidraça
bate a chuva miudinha
e ella, a Maria da Graça
finge que a saia arregaça
e ri com gosto, a tontinha!

A cabeça descoberta
e a chuva tão miudinha…
E ella a rir, travessa e esperta,
pára na rua, deserta,
e os pés na lama chapinha.

O cabello a desfrizar-se
com a chuva miudinha…
E ella, rindo, a arregaçar-se,
como quem sêdas trajasse
em vez de curta sainha.

Ris, pequena endiabrada?
E a chuva cae miudinha
mas olha a saia encarnada
que de tanto arregaçada,
se não vê, a pobresinha!

Que gosto é esse, Maria?
Cai a chuva miudinha…
Foge, corre, que ella é fria
e eu sei que alguém choraria
ao saber-te doentinha».
Maria Anna Achioli. Almanach de Lembranças, 1913

Lar Feliz
«Olha o sol já se escondeu,
não tenho tempo a perder,
vem o Manel, quer comer.
Todo o dia a trabalhar,
É tempo de descançar!
Tão branco e tão pequenino,
como dorme o meu menino
o filho que Deus me deu!

Na mesa nova de pinho
manchando a alvura do linho.
Luz o verde cangirão,
dois talheres, copos e pão.

Ah! mulher, temos bom anno,
não ha fome cá n’aldeia,
a espiga é grande e cheia,
cahiu a agua dos Ceus
e inchou-a, benza-a Deus!
E a gente sempre a pensar
que a chuva a vinha estragar,
e ás terras causar damno…

A comida é bem frugal
batatas, couves com sal;
mas na terrina aldeã
cheira a sopa a hortelã.

Está boa a ceia, Maria;
Ah!... Olha lá, meu amor,
faz hoje um anno, pois não?
Que o bom do senhor prior
me deu para a minha mão
a cachopa mais bonita,
a moçoila mais catita
que eu vi lá na romaria.

E os copos enchem-se então
á nossa e á do petiz,
Fructo d’aquella affeição,
Enlevo do lar feliz!»
Maria Anna Achioli

In Nuno Catarino Cardoso, Poetisas Portuguesas, Prefácio, Antologia contendo dados de 106 poetisas, Livraria Scientífica, Lisboa, 1917, Library University of Toronto, 1969.

Cortesia de LScientífica/PCardoso/JDACT 

Para Mim… Poesia. 1951-1986. Alexandre O’Neill. «Dantes quão ledo afectava uma atroz melancolia! Poeta triste ser queria e por não chorar chorava. Depois, tive que encontrar a vida rígida e má»

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Periclitam os grilos
«Periclitam os grilos:
a noite é nada.
Quem tem filhos tem cadilhos.
(Que quadra tão bem rimada!)

Não espere, leitor, que eu diga:
debaixo daquela arcada…
Não venho fazer intriga:
versejo só, e mais nada.

Assim o terceiro verso
desta tirada
(reparou que é um provérbio?)
não significa mais nada.

Se a noite é nada e os grilos
não estão de asa parada,
não vou puxar, só por isso,
o fio da meada,

leitor que me pede a história
que já traz engatinhada,
leitor que não se habitua
a que não aconteça nada

em poesia que comece
como esta foi começada
e acabe como esta
vai ser agora acabada…»

Zibaldone
«Povo marinheiro,
povo camponês,
um povo inteiro
à espera de vez.

Irene! Irene!
Sirva o leite-creme!

Não sei para onde
fugiu a sardinha.
Teu peito que esconde,
ó Mariazinha?

Irene! Irene!
Sirva o leite-creme!

Minha preguiceira,
ó santo aconchego!
Dormir como um prego
dorme na madeira…

Irene! Irene!
Sirva o leite-creme!

Recessos da alma,
ressessos estão…
Só quem fala, fala!
Quem se cala, não…

Irene! Irene!
Sirva o leite-creme!

Um, dois, três! Meu velho
mostra como é,
obriga o joelho
a dobrar de fé.

Irene! Irene!
Sirva o leite-creme!

Um deus-calçadeira,
portátil, de bolso,
ou a vida inteira
contra-reembolso?

Irene! Irene!
Sirva o leite-creme!

Para abrir, carregue
onde lhe pareça.
Tome uma colher
e morra depressa.

Irene! Irene!
Sirva o leite-creme!

Ó Zélia-só-corpo,
história de cordel,
a carne de porco
faz-te mal à pele.

Irene! Ó Irene!
Então esse leite-creme!»
Poemas de Alexandre O’Neill, in ‘Poesias Completas, 1951 / 1986

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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

A Cultura Integral do Indivíduo. Problema Central do Nosso Tempo. 1933. Bento de Jesus Caraça. «Por que razão o estado social saído da revolução francesa não garantiu até hoje essa identificação da individualidade com a colectividade?»

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«(…) A marcha para um estado superior da orgânica, para a supressão do antagonismo entre o individual e o colectivo é permanente, simplesmente o caminho seguido não é direito e fácil, é antes um caminho tortuoso, sempre ascendente, la route en lacets qui monte de que falava Renan. Que essa aquisição de um estado superior de unidade só pode fazer-se pela luta e através de contradições, é lei fundamental da vida; não há que pretender, fora da realidade, modificá-la, mas sim que interpretá-la, compreendê-la e actuar em consequência. Cada fase da luta é um passo novo dado no caminho para a unidade do individual e do colectivo; ela interessa cada vez mais as camadas profundas, que assim surgem progressivamente para a luz, se arrancam a si mesmas da treva e conquistam um lugar ao sol. Na época actual, estamos vivendo precisamente uma fase dessa luta, a mais ampla e mais crua de todos os tempos. O que é que lhe dá essa amplitude e essa crueza até hoje ainda não atingidas? Para o vermos, temos que recuar um pouco. Pelo final do século XV, começa a aparecer no mundo ocidental uma classe cuja intervenção nas relações sociais se torna cada vez mais frequente e mais vigorosa. Serve-lhe de suporte económico a extensão crescente das relações comerciais com outras partes do mundo, a aparição de inventos importantes, como a imprensa, o desenvolvimento das ciências de observação que, tendo tido em Rogério Bacon o seu precursor, deviam contar nos séculos XVI e XVII com os nomes brilhantes de Leonardo da Vinci, Copérnico, Kepler e Galileu.
Durante estes séculos e os seguintes, o peso dessa classe nova não cessou de aumentar e a luta contra a então classe detentora do poder foi crescendo em intensidade. Essa luta feriu-se em primeiro lugar contra a Igreja que, omnipotente durante toda a Idade Média, estava no entanto a braços com uma grave crise interior e via escaparem-lhe lentamente das mãos as alavancas mercê das quais até aí desfrutara os benefícios de uma hegemonia material e espiritual. Luta cruenta foi essa, a de um organismo corrompido que queria continuar a sobreviver-se, luta a que não faltaram, ao lado de guerras sangrentas, os episódios mais dramáticos, como o suplício de Giordano Bruno e o processo monstruoso movido a Galileu. Alcançada porém a vitória da concepção laica do Estado e dissipada em Westfália a esperança de continuação da soberania papal, pelo divórcio do Sacerdócio e do Império, pareceria que a nova classe deveria definitivamente ascender à direcção da sociedade, impondo uma ordem nova. Tal não se deu porém. O conflito religioso, por maior acuidade que tivesse revestido, não interessava os alicerces do edifício; esses eram trabalhados por outras correntes e a luta ia continuar noutro plano, o político-económico.
Vemos assim aparecer, na segunda metade do século XVII, várias concepções quanto à natureza e legitimidade do Estado, concepções que oscilavam entre dois pólos extremos: a do Estado justificado na medida em que assegura e promove a defesa da liberdade individual e propicia as condições de uma existência racional, única verdadeiramente humana, Espinosa; a do Estado consubstanciado com uma pessoa sagrada, cuja actuação tem um só controlo, o da sua própria consciência, inspirada directamente por Deus, único a quem o soberano tem que dar contas, Bossuet. Triunfou momentaneamente a tese de Bossuet, na pessoa de Luís XIV; a de Espinosa deveria esperar pelo século XVIII para que lhe fosse dada uma realização parcial na grande transformação que se avizinhava. Por várias razões, que seria longo enumerar aqui, foi a França o ponto nevrálgico das contradições e conflitos dessa época; lá se concentrou a actividade dos grandes individualistas revolucionários, obreiros espirituais da revolução que havia de abrir uma era nova na História.
A nova classe, que vimos começar a manifestar-se alguns séculos antes, inscreveu na sua bandeira as reivindicações fundamentais formuladas por esses homens, e assim tornou possível um novo acordo, numa base ampla, entre o individual e o colectivo. Quando esses homens reclamavam o reconhecimento dos direitos do indivíduo, não faziam mais que pretender subtrair a colectividade ao poderio de uma classe restrita e, portanto, reforçando a personalidade individual, dar, por isso mesmo, uma força nova ao agregado. O grande erro dos individualistas de hoje é o conservarem-se agarrados à letra das fórmulas, sem notarem que os termos têm agora um sentido novo que lhe é emprestado pela diferença fundamental das circunstâncias. Então, por não haver liberdade reconhecida expressamente, os interesses gerais exigiam a luta por esse reconhecimento; hoje, em que dela se usou e abusou criminosamente, os mesmos interesses gerais exigem uma limitação, não do uso mas do abuso. Desenvolvimento e reforçamento da personalidade, sim, tarefa essencial, mas que eles sejam permitidos e propiciados a todos. Por que razão o estado social saído da revolução francesa não garantiu até hoje essa identificação da individualidade com a colectividade?
A burguesia, após a sua ascensão ao poder, não resistiu ao anquilosamento que vimos atrás ser característica essencial das classes dirigentes. Depressa cessou a harmonia dos seus interesses com os interesses gerais. Os seus fundamentos económicos, livre concorrência e propriedade privada, cedo se tornaram, pela acção implacável da evolução acelerada do século XIX, em armas terríveis que ela brandiu em seu exclusivo proveito. A civilização de base capitalista tornou inoperantes os princípios de liberdade individual e de igualdade, para não falar já no da fraternidade que só por sarcasmo se pode pretender que esteja incluído hoje entre as ideias dominantes da governação. Um elemento novo entrou em cena, a máquina, cujo desenvolvimento permitiu, como diz Ayguesparse no seu luminoso estudo sobre Maquinismo e Cultura, uma formidável síntese entre uma classe -a burguesia, e uma doutrina económica, o capitalismo. E essa síntese, que teria sido fecunda se a máquina tivesse sido posta, como devia, ao serviço do homem, tornou-se, pelo contrário, monstruosa, porque produziu, não a emancipação, mas escravização económica do trabalhador. O homem escravo da coisa -eis a grande condenação, no campo moral, do regime social contemporâneo». In Bento de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939.

Cortesia de Seara Nova/JDACT

Quattrocento. Susana Fortes. «Levantei a cabeça e olhei para o fundo da sala como se precisasse certificar-me de que estava a salvo, protegida dentro daquele templo do saber. Havia quatro ou cinco pessoas…»

 Cortesia de wikipedia e jdact

A Conspiração contra os Médicis
«(,…) Precisamente nesse interesse pela observação exaustiva do mundo se enraizava a grande lição de seus manuscritos, com a qual ele contagiou alguns pintores de sua geração e outros mais jovens, como o próprio Leonardo da Vinci, que era apenas um aprendiz de 14 anos quando os dois se conheceram na bottega de Andrea Verrocchio e não demoraria a se transformar num de seus mais fervorosos admiradores: … captar o movimento de um espirro, a espessura de uma gota de sangue, indagar nos rostos das pessoas até ser capaz de adivinhar a sua fadiga, a sua ambição ou a sua luxúria…, descrever as estrias do palato de um cão. Essa devia ser a verdadeira natureza do artista, pensei, um homem capaz, se necessário, de colocar a sua mão pesquisadora entre as garras de uma fera. Além dessas reflexões, os cadernos também incluíam receitas culinárias, contas domésticas, listas de compras, endereços e até fragmentos de poemas que lhe serviam para dar rédea solta aos demónios que o torturavam por dentro. Mas, outras vezes, as suas anotações adquiriam toda a força da actualidade com a contundência de uma martelada, como aconteceu no dia 26 de Abril de 1478, poucas horas antes que o pintor entrasse para sempre no reino das trevas. Era o último domingo de Abril, e a aura religiosa da Páscoa de Ressurreição ainda flutuava no ambiente. Eu imaginava a reverberação que o sol deixaria no ar parado da praça e, ao imergir naqueles dossier, sentia a mesma vertigem que experimentaria se estivesse debruçada num mirante da muralha: o azul absoluto do céu, a cúpula da Santa Maria del Fiore resplandecendo sob o sol com imponente majestade, as vozes que começavam a se congregar por volta do meio-dia na Via Martelli para ir ao ofício religioso. Nada fazia supor que apenas alguns minutos depois, no momento culminante da missa, quando o padre ia elevar o cálice no altar-mor de Santa Maria del Fiore, fossem acontecer ali factos que transformariam aquele sacramento numa monstruosa carnificina que deixaria as naves do templo repletas de sangue e vísceras palpitantes. Embora as margens dos cadernos fossem muito estreitas, em algumas folhas podiam-se ler frases soltas escritas apertadamente com tinta mais escura. Eu examinava as páginas uma e outra vez, tentando captar até o menor detalhe que desse alguma luz à minha investigação: um ligeiro tremor na caligrafia, a tendência descendente de uma linha, uma frase truncada, qualquer alteração, por mínima que fosse. As descrições de Lupetto pareciam tanto mais vivas quanto mais se atinham à morte real. Na penumbra cavernosa da catedral, as coisas deviam ser percebidas de forma fragmentária, desfocadas, como reflectidas nas lascas de um espelho quebrado, e era assim que eu as via enquanto ia lendo com a mente atenta aqueles pergaminhos envelhecidos: a luz branca dos círios, o rosto de um homem em uma nave lateral com os olhos alucinados, como se tivessem sido projectados das órbitas por um espanto antes que a morte os vitrificasse, respirações agónicas, sapateios espavoridos… No fragor do tumulto, um frade com o rosto coberto por um lenço amarelo que lhe escondia o nariz e as bochechas como uma máscara saiu de trás de um confessionário com o hábito de sarja negro arregaçado até os cotovelos, e os braços ensopados de sangue como os de um açougueiro. Nessa altura toda a catedral já estava um inferno. Ouviram-se gritos e uma atropelada confusão de correrias em disparada começou a sacudir os alicerces do templo. O caos foi tamanho que algumas testemunhas temeram que a cúpula de Brunelleschi desabasse sobre as suas cabeças. Todos fugiam: políticos, cónegos catedralícios recolhendo as vestes até à cintura, embaixadores, fiéis, homens, mulheres e crianças dominadas pelo pânico. Alguém disse então que o sangue dos florentinos não era vermelho, mas preto, e que um homem justo deveria antes arrancar os olhos do que ver certas coisas. Quanto mais adentrava na leitura, mais crescia em mim um sentimento opaco que excedia o interesse puramente académico pela minha tese, uma mistura estranha de morbidez e apreensão que assolava a minha curiosidade. Segundo Lupetto, a notícia do atentado contra a família de Lourenço Médici envenenou o ar com o enxofre de uma tempestade que em pouco tempo faria voarem os toldos e estandartes, abarrotaria os becos com gritos de sabá e cairia sobre a cidade como uma condenação. Esses factos, baptizados com o nome de conjuração dos Pazzi por causa do papel que esta família desempenhou na conspiração, não eram desconhecidos para mim nem para nenhum historiador especializado no Renascimento, mas devo reconhecer que a profusão de detalhes escabrosos conseguiu revirar-me o estômago. Parece que alguns dos conjurados tinham chegado ao extremo de rasgar a carne dos mortos com os próprios dentes, um facto que eu não sabia se devia atribuir à vingança ou a algum tipo de ritual macabro. Por um momento, pensei que provavelmente respondesse a uma motivação religiosa. Isso não significava que tais actos implicassem necessariamente algum tipo de canibalismo, real ou simbólico, como o representado na eucaristia pela comunhão do corpo e do sangue de Cristo, mas talvez ajudasse a explicar. Se não, como entender que alguém enfiasse a mão dentro de um cadáver esquartejado e escavasse no seu interior, como relatava um dos testemunhos recolhidos por Masoni: … arrancou-lhe o coração, partiu-o (…), levou-o a boca, deu-lhe uma dentada e eu, ao ver isto, fugi… As ideias se amontoavam na minha mente quando tentei imaginar o possível significado disso tudo, mas o que li a seguir deixou-me ainda mais estupefacta, provocando-me uma náusea que me obrigou a tapar instintivamente a boca com a mão. Levantei a cabeça e olhei para o fundo da sala como se precisasse certificar-me de que estava a salvo, protegida dentro daquele templo do saber. Havia quatro ou cinco pessoas trabalhando nas suas mesas, e durante um segundo pensei na bestialidade íntima que cada um daqueles educados pesquisadores podia ocultar debaixo da sua roupa. Que tipo de animalidade eu também escondia, para que semelhante carnificina me electrizasse?» In Susana Fortes, Quattrocento, tradução de Maria Alzira Lemos, Pontas Literary, 2007, Planeta, Edições ASA, 2009, ISBN 978-989-230-488-5.

Cortesia de PLiterary/Planeta/Asa/JDACT