«(…) Assim que atravessou a porta,
a luz do quarto de hotel diminuiu. Ouviu o bater de asas. Piccioni! O paquete
imitou o gesto de comer e apontou para as dezenas de gordos pássaros cinzentos
ao longo dos beirais. Salvaram Veneza durante as pragas. Quando a porta se
fechou atrás dele, Luce despiu a camisola encharcada. Em seguida, abriu a mala
de viagem e desembrulhou a caixa dos documentos para ver se alguma humidade aí
penetrara. A caixa era de plástico translúcido, apresentando o brilho enevoado
de uma cortina de duche. Ficou impressionada com o cuidado que Charles Smith
dedicara aos documentos. A caixa era a mais recente inovação no que dizia
respeito a materiais de arquivo, apenas com meio centímetro de espessura ou
"tamanho delgado, o melhor para o transporte de documentos. Como precaução
tinha-a enrolado com cordel, para o caso de as fivelas se abrirem, Luce cortou
o cordel com a tesoura das unhas e removeu nervosamente o invólucro de tecido
não ácido, expondo uma fotocópia dos documentos, um velho diário de capa
vermelha, um manuscrito árabe encadernado em carneira ornamentada e um maço de
cartas. Está tudo seco, pensou. Felizmente. As cartas de Casanova encontravam-se
ao lado do velho diário, atadas com uma fita cor-de-rosa desbotada. Examinou-as
primeiro, desatando a fita com os seus longos dedos ágeis. O pessoal da
Sansoviniana haveria de ficar satisfeito: nem uma gota de humidade do século XXI
desfigurava o papel que ostentava a marca-d’água de Fabriano.
Houvera muita descrença e
divertimento na família de Luce depois de as cartas terem sido autenticadas
pelo especialista de Harvard, Charles Smith. Segurando-as sob o candeeiro da
mesa-de-cabeceira, detectou um ligeiro brilho nas páginas e compreendeu que
fora espalhada areia sobre o papel, talvez para secar a tinta dourada. Casanova
usara uma tinta mais escura e algumas das folhas apresentavam-se frágeis e
rendilhadas, como se a tinta tivesse comido o papel. Não havia dúvida de ter
sido a isto que Charles Smith se referira ao afirmar que as cartas de Casanova
se encontravam em condições razoáveis. Ansiava por lê-las, mas a sua fragilidade
fê-la hesitar. E se rasgasse uma sem querer, reduzindo-lhe o valor? Era
preferível ler as fotocópias que Charles Smith lhe fornecera, embora não
tivessem o mesmo encanto.
Os documentos de família
constituíam um fonds d’archives, o termo arquivístico para designar um conjunto
de papéis acumulados por uma pessoa ao longo da sua vida. Embora a maioria das
pessoas pudesse contentar-se em chamar aos documentos colecção, a formação de
Luce como arquivista ensinara-a a usar o termo exacto, e continuava a
agradar-lhe enrolar aquelas palavras na língua. O fonds pertencera,
aparentemente, Asked For Adams, que usava um nome puritano geralmente
atribuído aos rapazes. Era uma tia-trisavó de Luce, mais precisamente, e por
isso, em sentido estrito, não era sua antepassada, mas era assim que Luce
sempre pensara nela. Afinal, eram ambas Adams. De acordo com a Bíblia familiar
dos Adams, Asked For desaparecera em Veneza numa tarde de Primavera,
durante o século XVIII, presumivelmente vítima dos soldados de Napoleão.
Ninguém sabia como os papéis de Asked For haviam aparecido no sótão da velha casa de campo dos Adams, na margem
sul do São Lourenço. Após a morte da mãe de Luce, dois anos antes, a tia
Beatrice encontrara-os debaixo de outros documentos antigos, na sua maior parte
cartas de membros esquecidos da família. O próprio sótão era uma confusão de detritos
de gerações de Adams, bronzes de templos japoneses, gravuras, tapeçarias de bordado
oriental, carpetes turcas (como eram então chamadas) e espadas militares.
Assumia-se que os documentos haviam sido trazidos para o Canadá há mais de
cento e cinquenta anos por Aaron Adams, um apóstolo da temperança que perdera o
contacto com o ramo de Boston da família após a sua partida de Albany, Nova
Iorque para norte, a pé, procurando um lugar ermo onde os pobres não se deixassem
arruinar pela bebida.
Enquanto os pombos esvoaçavam do
lado de fora da janela, voltou a pôr as cartas de Casanova na caixa de arquivo
e removeu o grosso diário vermelho, sorrindo ao seu título: O Que Casanova
Me Contou: As Minhas Deambulações com Jacob Casanova através dos Antigos Reinos
do Mediterrâneo. O nome Asked For Adams aparecia na página de título, juntamente
com uma lista de lugares visitados, empreendimentos levados a cabo, um
precursor da tendência dos turistas modernos de dar a conhecer os seus
destinos, como se de resultados do golfe se tratasse. Podia ler-se a data de 1797. Não foi só o maravilhoso título
que a fez suster a respiração. Reparou também num pequeno desenho,
representando uma mulher vestida com calças à turca, inserido entre as últimas
páginas do diário e, no frontispício, um mapa desenhado à mão, ostentando uma
fina linha ponteada, como que a marcar uma viagem de Veneza para Constantinopla».
In
Susan Swan, Casanova Revisitado, 2005, tradução de Fernanda Semedo, Editorial
Estampa, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-332-345-0.
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