sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Casanova Revisitado. Susan Swan. «Não foi só o maravilhoso título que a fez suster a respiração. Reparou também num pequeno desenho, representando uma mulher vestida com calças à turca, inserido entre as últimas páginas do diário e, no frontispício, um mapa desenhado à mão…»

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«(…) Assim que atravessou a porta, a luz do quarto de hotel diminuiu. Ouviu o bater de asas. Piccioni! O paquete imitou o gesto de comer e apontou para as dezenas de gordos pássaros cinzentos ao longo dos beirais. Salvaram Veneza durante as pragas. Quando a porta se fechou atrás dele, Luce despiu a camisola encharcada. Em seguida, abriu a mala de viagem e desembrulhou a caixa dos documentos para ver se alguma humidade aí penetrara. A caixa era de plástico translúcido, apresentando o brilho enevoado de uma cortina de duche. Ficou impressionada com o cuidado que Charles Smith dedicara aos documentos. A caixa era a mais recente inovação no que dizia respeito a materiais de arquivo, apenas com meio centímetro de espessura ou "tamanho delgado, o melhor para o transporte de documentos. Como precaução tinha-a enrolado com cordel, para o caso de as fivelas se abrirem, Luce cortou o cordel com a tesoura das unhas e removeu nervosamente o invólucro de tecido não ácido, expondo uma fotocópia dos documentos, um velho diário de capa vermelha, um manuscrito árabe encadernado em carneira ornamentada e um maço de cartas. Está tudo seco, pensou. Felizmente. As cartas de Casanova encontravam-se ao lado do velho diário, atadas com uma fita cor-de-rosa desbotada. Examinou-as primeiro, desatando a fita com os seus longos dedos ágeis. O pessoal da Sansoviniana haveria de ficar satisfeito: nem uma gota de humidade do século XXI desfigurava o papel que ostentava a marca-d’água de Fabriano.
Houvera muita descrença e divertimento na família de Luce depois de as cartas terem sido autenticadas pelo especialista de Harvard, Charles Smith. Segurando-as sob o candeeiro da mesa-de-cabeceira, detectou um ligeiro brilho nas páginas e compreendeu que fora espalhada areia sobre o papel, talvez para secar a tinta dourada. Casanova usara uma tinta mais escura e algumas das folhas apresentavam-se frágeis e rendilhadas, como se a tinta tivesse comido o papel. Não havia dúvida de ter sido a isto que Charles Smith se referira ao afirmar que as cartas de Casanova se encontravam em condições razoáveis. Ansiava por lê-las, mas a sua fragilidade fê-la hesitar. E se rasgasse uma sem querer, reduzindo-lhe o valor? Era preferível ler as fotocópias que Charles Smith lhe fornecera, embora não tivessem o mesmo encanto.
Os documentos de família constituíam um fonds d’archives, o termo arquivístico para designar um conjunto de papéis acumulados por uma pessoa ao longo da sua vida. Embora a maioria das pessoas pudesse contentar-se em chamar aos documentos colecção, a formação de Luce como arquivista ensinara-a a usar o termo exacto, e continuava a agradar-lhe enrolar aquelas palavras na língua. O fonds pertencera, aparentemente, Asked For Adams, que usava um nome puritano geralmente atribuído aos rapazes. Era uma tia-trisavó de Luce, mais precisamente, e por isso, em sentido estrito, não era sua antepassada, mas era assim que Luce sempre pensara nela. Afinal, eram ambas Adams. De acordo com a Bíblia familiar dos Adams, Asked For desaparecera em Veneza numa tarde de Primavera, durante o século XVIII, presumivelmente vítima dos soldados de Napoleão.
Ninguém sabia como os papéis de Asked For haviam aparecido no sótão da velha casa de campo dos Adams, na margem sul do São Lourenço. Após a morte da mãe de Luce, dois anos antes, a tia Beatrice encontrara-os debaixo de outros documentos antigos, na sua maior parte cartas de membros esquecidos da família. O próprio sótão era uma confusão de detritos de gerações de Adams, bronzes de templos japoneses, gravuras, tapeçarias de bordado oriental, carpetes turcas (como eram então chamadas) e espadas militares. Assumia-se que os documentos haviam sido trazidos para o Canadá há mais de cento e cinquenta anos por Aaron Adams, um apóstolo da temperança que perdera o contacto com o ramo de Boston da família após a sua partida de Albany, Nova Iorque para norte, a pé, procurando um lugar ermo onde os pobres não se deixassem arruinar pela bebida.
Enquanto os pombos esvoaçavam do lado de fora da janela, voltou a pôr as cartas de Casanova na caixa de arquivo e removeu o grosso diário vermelho, sorrindo ao seu título: O Que Casanova Me Contou: As Minhas Deambulações com Jacob Casanova através dos Antigos Reinos do Mediterrâneo. O nome Asked For Adams aparecia na página de título, juntamente com uma lista de lugares visitados, empreendimentos levados a cabo, um precursor da tendência dos turistas modernos de dar a conhecer os seus destinos, como se de resultados do golfe se tratasse. Podia ler-se a data de 1797. Não foi só o maravilhoso título que a fez suster a respiração. Reparou também num pequeno desenho, representando uma mulher vestida com calças à turca, inserido entre as últimas páginas do diário e, no frontispício, um mapa desenhado à mão, ostentando uma fina linha ponteada, como que a marcar uma viagem de Veneza para Constantinopla». In Susan Swan, Casanova Revisitado, 2005, tradução de Fernanda Semedo, Editorial Estampa, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-332-345-0.

Cortesia de EEstampa/JDACT