sábado, 19 de dezembro de 2015

A Cultura Integral do Indivíduo. Problema Central do Nosso Tempo. 1933. Bento de Jesus Caraça. «A vitória de uma ideia revolucionária significa, na época em que se dá, um acomodamento momentaneamente estável, mais perfeito que o anterior, entre as forças em presença»

jdact

«(…) Para que o quadro da diversidade seja completo, não lhe faltam sequer vastas regiões vazias, períodos extensos em que reina a acalmia e onde as sociedades parecem ter encontrado uma posição de equilíbrio fecunda para o progresso espiritual e material. Mas, mesmo nesses períodos de tranquilidade, as forças íntimas que trabalham a estrutura social não estão em repouso. Não é difícil discernir as correntes que carreiam incessantemente os materiais para a nova fase de luta. A agitação do organismo social não é menos viva, simplesmente ela exerce-se em camadas mais fundas, interessando os alicerces e deixando provisoriamente de parte a epiderme. Por isso, em todas as épocas de transformação nas relações sociais se encontram sempre pessoas a quem os acontecimentos surpreendem e que até ao fim negam aquilo que é a própria evidência. Vejamos como se podem caracterizar esses períodos intermédios de acalmia. Após uma grande transformação da orgânica social estabelece-se o equilíbrio entre as forças que a produziram, equilíbrio esse resultante da vitória de uma ideia revolucionária, encarnada por grupos determinados do agregado. O que é que deu a essa ideia um carácter revolucionário e a fez inscrever na bandeira de certos agrupamentos de forças? Se examinarmos a questão de perto, reconheceremos que a estrutura anterior não era já compatível com o estado real da evolução da sociedade. Os interesses dos grupos, castas ou classes, detentores do poder, ou duma sua parcela, encontravam-se em franco e violento antagonismo com os interesses gerais, antagonismo esse revelado, conforme a época considerada, em certo plano da vida social.
Dá-se então o choque, o qual, mais ou menos violento conforme a questão debatida, interessa em maior ou menor grau os fundamentos da estrutura existente, e nesse choque as forças dividem-se em dois campos: o daqueles que querem conservar ou, melhor, fazer sobreviver a si mesmo, um organismo condenado, e o dos que, tomando como lema a nova ideia, pretendem ascender, impondo formas novas. O poder revolucionário duma ideia mede-se portanto pelo grau em que ela interpreta as aspirações gerais, dadas as circunstâncias do momento em que actua. Assim, uma ideia ou teoria que, em dada época, é revolucionária, pode, noutra em que as circunstâncias sejam diferentes, ter perdido por completo esse carácter. Por exemplo, teve carácter revolucionário, no seu tempo, a teoria do direito divino dos reis, quando oposta à soberania divina dos papas, teoria que, mais tarde, não só perdeu essa característica, como até se revestiu duma feição eminentemente reaccionária; foi altamente revolucionária a doutrina individualista dos pensadores liberais do Século XVIII, doutrina que, sob essa forma, é nos nossos dias obstáculo ao progresso e que só deixará de o ser quando compreendida num sentido que as circunstâncias actuais exigem.
Mas não antecipemos, e voltemos ao ponto que no momento nos ocupa. A vitória de uma ideia revolucionária significa, na época em que se dá, um acomodamento momentaneamente estável, mais perfeito que o anterior, entre as forças em presença; significa que se deu um novo passo no sentido de subtrair o colectivo à tirania do individual; sentem-no bem as massas que, nessas épocas de comoção dos fundamentos da sociedade, se lançam, numa explosão de entusiasmo, ao assalto do corpo decrépito e parasitário que sobre elas vive. Mas a sua falta de preparação cultural, o não reconhecimento de si mesmas como um vasto organismo vivo e uno, torna-as incapazes de levar a sua obra mais além da destruição do passado; impossibilita-se de proceder à construção da ordem nova que a sua revolta preparou. E então dá-se, no dia seguinte ao do triunfo, a sua abdicação, num grande gesto de renúncia, essa obra de reconstrução, é um novo grupo, uma nova classe, mas não a colectividade inteira, que a vai empreender sob a égide da bandeira que presidiu à vitória. As novas forças detentoras do poder realizam as reformas indispensáveis, os interesses gerais estão por um momento satisfeitos; numa base mais larga que a passada, concordam o individual e o colectivo, abre-se um período de acalmia, período cuja duração depende da medida em que a nova classe dirigente se conserva fiel aos motivos que originaram o seu advento e também do grau de consciência colectiva das massas.
Passa algum tempo e começa nova diferenciação, os interesses egoístas dos dirigentes sobrepõem-se aos interesses gerais, são novos elementos individuais que começam a exercer opressão sobre a colectividade; aparecem contradições, a massa sente-o e afasta-se intimamente dos que a governam; surge nova ideia ou nova doutrina de antecipação que encarna as aspirações surdas dos que sofrem; tudo recomeça, a situação torna-se revolucionária; de aí à revolução vai um passo. Evitá-la? Só seria possível por uma reacomodação da classe dominante, mas esta é levada insensivelmente, a despeito da evidência e dos avisos até de alguns dos seus membros mais clarividentes ou mais desinteressados, a aferrar-se aos seus privilégios, a defender-se pela força, em vez de se voltar para aqueles princípios que, na sua pureza, a levaram ao triunfo passado. Dá-se assim um anquilosamento da classe dirigente; a doutrina ou teoria, em cujo nome antes lutara e vencera, perde o seu carácter revolucionário, torna-se, primeiro, conservadora, e mais tarde, quando os antagonismos são flagrantes e se trava a luta, reaccionária. Tudo recomeça, disse acima, mas seria vão pretender-se que recomeça exactamente nas mesmas bases. Não; da etapa anterior, alguma coisa, às vezes muito, ficou definitivamente adquirido». In Bento de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939.

Cortesia de Seara Nova/JDACT