«(…) Para que o quadro da diversidade seja completo, não lhe faltam
sequer vastas regiões vazias, períodos extensos em que reina a acalmia e onde
as sociedades parecem ter encontrado uma posição de equilíbrio fecunda para o
progresso espiritual e material. Mas, mesmo nesses períodos de tranquilidade,
as forças íntimas que trabalham a estrutura social não estão em repouso. Não é
difícil discernir as correntes que carreiam incessantemente os materiais para a
nova fase de luta. A agitação do organismo social não é menos viva,
simplesmente ela exerce-se em camadas mais fundas, interessando os alicerces e deixando
provisoriamente de parte a epiderme. Por isso, em todas as épocas de transformação
nas relações sociais se encontram sempre pessoas a quem os acontecimentos surpreendem
e que até ao fim negam aquilo que é a própria evidência. Vejamos como se podem
caracterizar esses períodos intermédios de acalmia. Após uma grande
transformação da orgânica social estabelece-se o equilíbrio entre as forças que
a produziram, equilíbrio esse resultante da vitória de uma ideia
revolucionária, encarnada por grupos determinados do agregado. O que é que deu
a essa ideia um carácter revolucionário e a fez inscrever na bandeira de certos
agrupamentos de forças? Se examinarmos a questão de perto, reconheceremos que a
estrutura anterior não era já compatível com o estado real da evolução da
sociedade. Os interesses dos grupos, castas ou classes, detentores do poder, ou
duma sua parcela, encontravam-se em franco e violento antagonismo com os
interesses gerais, antagonismo esse revelado, conforme a época considerada, em
certo plano da vida social.
Dá-se então o choque, o qual, mais ou menos violento conforme a questão
debatida, interessa em maior ou menor grau os fundamentos da estrutura
existente, e nesse choque as forças dividem-se em dois campos: o daqueles que
querem conservar ou, melhor, fazer sobreviver a si mesmo, um organismo
condenado, e o dos que, tomando como lema a nova ideia, pretendem ascender,
impondo formas novas. O poder revolucionário duma ideia mede-se portanto pelo
grau em que ela interpreta as aspirações gerais, dadas as circunstâncias do
momento em que actua. Assim, uma ideia ou teoria que, em dada época, é
revolucionária, pode, noutra em que as circunstâncias sejam diferentes, ter
perdido por completo esse carácter. Por exemplo, teve carácter revolucionário, no
seu tempo, a teoria do direito divino dos reis, quando oposta à soberania
divina dos papas, teoria que, mais tarde, não só perdeu essa característica,
como até se revestiu duma feição eminentemente reaccionária; foi altamente
revolucionária a doutrina individualista dos pensadores liberais do Século
XVIII, doutrina que, sob essa forma, é nos nossos dias obstáculo ao progresso e
que só deixará de o ser quando compreendida num sentido que as circunstâncias
actuais exigem.
Mas não antecipemos, e voltemos ao ponto que no momento nos ocupa. A
vitória de uma ideia revolucionária significa, na época em que se dá, um acomodamento
momentaneamente estável, mais perfeito que o anterior, entre as forças em presença;
significa que se deu um novo passo no sentido de subtrair o colectivo à tirania
do individual; sentem-no bem as massas que, nessas épocas de comoção dos
fundamentos da sociedade, se lançam, numa explosão de entusiasmo, ao assalto do
corpo decrépito e parasitário que sobre elas vive. Mas a sua falta de
preparação cultural, o não reconhecimento de si mesmas como um vasto organismo
vivo e uno, torna-as incapazes de levar a sua obra mais além da destruição do
passado; impossibilita-se de proceder à construção da ordem nova que a sua
revolta preparou. E então dá-se, no dia seguinte ao do triunfo, a sua
abdicação, num grande gesto de renúncia, essa obra de reconstrução, é um novo
grupo, uma nova classe, mas não a colectividade inteira, que a vai empreender
sob a égide da bandeira que presidiu à vitória. As novas forças detentoras do
poder realizam as reformas indispensáveis, os interesses gerais estão por um
momento satisfeitos; numa base mais larga que a passada, concordam o individual
e o colectivo, abre-se um período de acalmia, período cuja duração depende da medida
em que a nova classe dirigente se conserva fiel aos motivos que originaram o
seu advento e também do grau de consciência colectiva das massas.
Passa algum tempo e começa nova diferenciação, os interesses egoístas
dos dirigentes sobrepõem-se aos interesses gerais, são novos elementos
individuais que começam a exercer opressão sobre a colectividade; aparecem
contradições, a massa sente-o e afasta-se intimamente dos que a governam; surge
nova ideia ou nova doutrina de antecipação que encarna as aspirações surdas dos
que sofrem; tudo recomeça, a situação torna-se revolucionária; de aí à
revolução vai um passo. Evitá-la? Só seria possível por uma reacomodação da
classe dominante, mas esta é levada insensivelmente, a despeito da evidência e
dos avisos até de alguns dos seus membros mais clarividentes ou mais desinteressados,
a aferrar-se aos seus privilégios, a defender-se pela força, em vez de se voltar
para aqueles princípios que, na sua pureza, a levaram ao triunfo passado. Dá-se
assim um anquilosamento da classe dirigente; a doutrina ou teoria, em cujo nome
antes lutara e vencera, perde o seu carácter revolucionário, torna-se,
primeiro, conservadora, e mais tarde, quando os antagonismos são flagrantes e
se trava a luta, reaccionária. Tudo recomeça, disse acima, mas seria vão
pretender-se que recomeça exactamente nas mesmas bases. Não; da etapa anterior,
alguma coisa, às vezes muito, ficou definitivamente adquirido». In Bento de Jesus Caraça, 1933, União
Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939.
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