«(…) Nem todos os nossos
historiadores de literatura reconhecem, porém, esta evidência. Enquanto uns
vêem em Gil Vicente o representante mais eloquente do velho teatro moribundo em
Portugal (António José Saraiva) e nas suas obras a crista triunfante de uma vaga,
até então de pouca altura, mas que já vinha de longe, do coração da Idade Média
(Mário Martins), outros consideram a existência de um teatro pré-vicentino
menos ainda que uma hipótese: uma suposição gratuita (Costa Pimpão). Todavia,
já em fins do século passado, Teófilo Braga dedicava a introdução de cada um
dos seus dois volumes sobre Gil Vicente e as Origens do Teatro Nacional e
Escola de Gil Vicente e Desenvolvimento do Teatro Nacional, ambos
publicados em 1898, ao rastreio de manifestações dramáticas anteriores à obra
do poeta quinhentista, a que aliás dedicara, em 1870, o capítulo inicial do
primeiro tomo da sua História do Teatro Português. O segundo daqueles
volumes abre, significativamente, por estas palavras: os elementos tradicionais
e populares do teatro português a que Gil Vicente deu forma literária foram a
primeira condição para a estabilidade da sua obra. Semelhante diversidade de
opiniões assenta no equívoco denunciado nas considerações pelas quais iniciámos
o presente trabalho. Já na sua citada Vida da Arte Teatral, Baty e
Chavance haviam chamado a atenção para as duas grandes correntes que, ao longo
da evolução histórica do teatro, desenham a sua trajectória: uma, coincidente com
as suas origens mais remotas, concede toda a importância à representação, ao
ritmo, à música, às linhas, às cores, isto é, ao actor e ao espectáculo:
corresponde às representações mágicas ou litúrgicas dos povos primitivos, aos
mistérios eleusinos, aos mimos da decadência romana, à commedia dell’arte, ao
ballet, à ópera clássica, à pantomima dos funâmbulos; a outra, posteriormente
surgida, por sua vez concede toda a importância ao texto e não admite os
elementos espectaculares e mímicos senão como acessórios, reduzindo assim a
arte dramática a um género literário.
Ora o teatro, como
vimos, resulta da convergência, da interpenetração destas duas correntes, que,
longe de se oporem, uma à outra se completam; ele é, nos seus mais genuínos
momentos, a resultante do equilíbrio conseguido entre um texto e a sua representação
espectacular, a síntese dialéctica desses factores complementares. Aquele sem
esta limitar-se-á a uma existência apenas virtual; esta sem aquele estará condenada
a uma existência fruste. Assim, os que negam pura e simplesmente a
improbabilidade de um teatro português anterior a Gil Vicente, fazem-no em nome
da corrente que reduz a arte dramática a um género literário, para repetir as
palavras de Baty e Chavance. Desprezando preconceituosamente o elemento espectacular,
em nome de uma abstracta pureza literária que as grandes obras da dramaturgia
universal repelem, aqueles que assim pensam, amarrados a uma estreita visão
unilateral do teatro, acabam por ter de remeter-se a uma explicação ainda mais
vaga, ainda mais gratuita, ainda mais abstracta, para radicar no autor da Farsa
de Inês Pereira a fundação do nosso teatro: o génio de Gil Vicente.
Se pomos de parte uma
tal explicação, cujo intrínseco romantismo bastaria para a tornar desde logo
suspeita à moderna crítica literária, não é evidentemente por recusarmos a
impetuosa genialidade do dramaturgo que fazia os autos a el-rei, como também a
fermentação dramática que, em Inglaterra e pela mesma época, precedeu
Shakespeare, ou Molière em França no século seguinte, em nada lhes diminui o
génio incontestável. Mas a personalidade e a obra do criador do teatro nacional
como categoria literária autónoma, e é aí que reside a verdadeira grandeza de
Gil Vicente, não poderiam estruturar-se sem os gérmenes dramáticos da nossa
Idade Média, nem desenvolver-se sem as condições que a corte do Rei Venturoso
lhes proporcionou. Com Gil Vicente, pois, o teatro português apenas abandona o
estado larvar, embrionário, em que desde a fundação da nacionalidade até aos
fins do século XV vegetava, para assumir enfim uma existência literária. Numa
palavra: sai da sua pré-história para entrar na sua história propriamente dita».
In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de
Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas
da Livraria Bertrand, 1977.
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