O sacro e o profano
«(…) Assim como na antiguidade clássica o teatro nasceu do culto
dionisíaco, assim também as origens do teatro moderno aparecem, por entre as
brumas da Idade Média, confundidas com a ritologia cristã, embora nela se não
esgotem. Os estudos magistrais de um Karl Young e de um Gustave Cohen
estabeleceram definitivamente essa genealogia, que poderá surpreender na medida
em que se recordem as perseguições sistemáticas, os contínuos ataques
desencadeados pela Igreja contra os cómicos e o teatro. No ano de 1207 (para não falar já de proscrições
e anátemas anteriores, como aqueles que em 314 o Concílio de Arles fez desabar
sobre jograis, saltimbancos e actores) o papa Inocêncio III proibia, no
interior dos templos, todas as manifestações que não se revestissem de um
carácter estritamente litúrgico. No mesmo século, em Espanha, a Lei das Sete
Partidas de Afonso X, o Sábio, que reinou de 1252 a 1284, do mesmo passo
que vedava aos clérigos fazerem jogos de escárnio, assistirem a eles ou
consentirem que se fizessem nas igrejas, autorizava a representação do nascimento
de Nosso Senhor Jesus Cristo, em que se mostra como o anjo veio aos pastores e
lhes disse como era Jesus Cristo nascido; e outrossim de como os três reis
magos o vieram adorar; e da sua ressurreição, que mostra como foi crucificado e
ressurgiu ao terceiro dia: tais coisas como estas, que movem o homem a fazer
bem e a haver devoção na fé, podem fazê-las, mas devem fazê-las compostamente e
com grande devoção. Daqui resulta que a condenação dos theatrales ludi
se não estendia à evocação dramática, ou, mais propriamente, para-dramática, dos
dois grandes mistérios da cristandade: a Incarnação e a Ressurreição. Ora,
conhecidas as relações existentes entre a corte do monarca castelhano, que foi
sogro de Afonso III e avô de Dinis I, e a portuguesa, ambas as quais serviram
de berço à poesia trovadoresca, de estranhar seria que tais representações não
tivessem lugar também nas catedrais e nos mosteiros lusitanos, e, seguindo a
evolução natural do drama litúrgico medievo, do altar-mor não transitassem para
o adro e deste para a praça pública, até se autonomizarem por completo.
Foi, de resto, a interdição de jogos profanos no interior dos templos,
aliada ao declínio do primado espiritual da Igreja, que deu causa à
secularização do teatro, o qual, liberto dos formalismos rituais, assumiu uma
feição predominantemente popular, de harmonia com as exigências do novo público
iletrado a que passou a dirigir-se. Assim começou, por um fenómeno de cissiparidade
frequente na história das literaturas, a estabelecer-se uma separação entre o
drama hierático e o drama laico, aquele circunscrito às cerimónias eclesiásticas,
confundido com o culto, este tomando de início como pretexto festividades
religiosas mas a breve trecho afastando-se delas, quer pela sua forma, quer pelo
seu espírito. Se às manifestações de um e de outro acrescentarmos as de um
teatro áulico (ou aristocrático, como alguns historiadores preferem
chamar-lhe), radicado na corte e destinado por via de regra a comemorar e
ilustrar acontecimentos festivos, teremos enunciado as várias faces do triedro
sob que o teatro medieval se nos apresenta. Nem sempre essas três faces se
mostrarão rigorosamente extremadas, antes se interpenetram as mais das vezes: o
drama profano não esquece facilmente as suas origens sagradas, e as representações
áulicas mantêm estreitos pontos de contacto com as duas outras. Assim também,
como iremos ver, aconteceria entre nós.
Primeiras manifestações teatrais: o arremedilho
O testemunho mais antigo que se conhece de manifestações teatrais na
Idade Média portuguesa transporta-nos quase aos primórdios da nacionalidade: ao
ano de 1193, para maior exactidão.
Trata-se de uma carta (que se conserva na Torre do Tombo), datada do mês de
Agosto desse ano, confirmativa de uma doacção feita pelo rei Sancho I da
propriedade de umas terras em Canelas, lugar da freguesia de Poiares do Douro,
ao jogral Bonamis e a seu irmão Acompaniado, em paga de um arremedilho que
estes haviam representado na sua corte; esta doacção foi confirmada em 1222 por Afonso II a Bonamis e aos
herdeiros de Acompaniado, entretanto falecido. Diz, textualmente, esse
documento, transcrito por Sousa Viterbo no seu Elucidário: nos
mimi supranominati debemus Domino Nostro Regi pro reboratione unum arremidilum.
Seria
assim o arremedilho a célula originária do teatro português, a partir
da qual se formou, no dizer de Teófilo Braga, o fio da tradição dramática
entre nós, juízo praticamente adoptado por todos os estudiosos, com a excepção
única de Luciana Stegagno Picchio, que o não aceita como um género dramático
português específico, equiparando-o às imitações jogralescas, comuns a toda a
Europa medieval. O que, porém, não invalida a sua natureza virtualmente
dramática, a que a origem jogralesca não constitui obstáculo. Muito pelo contrário:
os jograis ou segréis, que prolongam a tradição dos antigos mimos e histriões,
foram, na Idade Média, e até que a invenção da imprensa e a difusão do livro
reduzissem a esfera da sua actividade, tornando-lhes praticamente inútil a
função, os agentes divulgadores da literatura oral, falada e cantada, o que os obrigava
a serem, antes de mais nada, actores.
O jogral, escreve Menéndez Pidal, conta as suas histórias pensando
sempre no auditório que tem na sua frente, ao qual muitas vezes se dirige
expressamente. Nele se confundem, pois, o autor e o actor: e tanto o vemos recitando
e cantando, com o auxílio da pantomima, da dança e do diálogo, para as tornar
mais convincentes, as histórias e fábulas do seu extenso repertório, em que se misturavam
antigas lendas, sátiras e epigramas sobre acontecimentos ou personagens
actuais, narrativas de peregrinos regressados de Jerusalém, vidas de santos e de
heróis, cantares de amor e gestas de cavalaria, nas festas populares como nas
cerimónias religiosas ou ainda perante os senhores feudais nos seus castelos e
o monarca no seu palácio». In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro
Português, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto
Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.
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