O
castelo de São Jorge. Um gigante de vigia à cidade
«(…)
Lisboa tinha respirado fundo nessa altura, e ela mais que muitos, para logo se
preocupar com as notícias oriundas dos campos de batalha, novas de vitórias
sofridas e de homens perdidos, mas também de um rei corajoso rodeado de fiéis
validos, jovens valentes como Nuno Álvares Pereira, tão pio como bravo e o
melhor amigo que João I podia ter. Tantas vitórias tinham acabado por lhe trazer
este amargo de boca. Um bom rei, era certo, mas João I mais parecia pedreiro, tão
dedicado estava a fazer obras nos palácios reais e agora até ali no castelo! Já
não bastava tê-lo entregado à protecção de um santo inglês, e agora ainda tinha
desatado a mudar o que ali havia e a construir novas casas. Um dos aios do rei
bem lhe tinha tentado fazer mudar as ideias, explicando que o velho paço real
iria ficar mais bonito e o castelo mais seguro, mas tudo isso não a fazia mudar
de ideias e gostar de toda a confusão de obras que p’rali ia. Parecia que
durante toda a sua vida tinha visto aquele castelo em obras, rei após rei fazendo
alterações e acrescentando coisas. Cavalariças, palácios nobres, Casas das
Rainhas, igrejas e capelas, tudo cabia no topo da colina. Ainda há poucos anos
o rei Fernando I pusera a cidade em alvoroço com a construção da nova muralha à
volta da cidade e o paço, quando trouxera para a Torre do Haver os arquivos do
reino. É claro que ela sabia que a muralha a protegia e que se o rei queria os
arquivos ali, ele é que sabia, mas desde então nunca mais ninguém lhe tirara o medo
que uma vela mal apagada pusesse fogo a todos os papéis que ali guardavam e
acabasse por consumir todo o paço.
Enquanto
isso não acontecia, dona Mécia lá se tinha resignado a rezar ao santo dos
ingleses, pedindo-lhe que protegesse este castelo que agora lhe fazia honra.
Até porque, apesar de barulhentos, os poucos soldados ingleses que ainda por
ali andavam nunca lhe tinham dado razão de queixa com brigas e más criações, e
eram sempre simpáticos quando iam à cozinha pedir mais alguma cerveja ou carne.
Certamente não queriam deixar ficar mal aquela que agora era rainha de
Portugal, dona Filipa Lencastre, essa inglesa tão clara que quase parecia uma
das imagens das igrejas. Pouco ainda a vira. e sempre ao longe, mas bastava-lhe
saber que era uma boa cristã e que fazia o seu rei feliz, pois na corte ninguém
conseguia ignorar o sentimento que acabara por unir aqueles esposos que só se
tinham conhecido no dia do casamento. Estavam certamente fadados a uma vida
feliz e com uma grande prole, querendo Deus.
Como
fazia todas as manhãs desde que se lembrava, foi à Igreja de Santa Cruz dizer
uma pequena prece pelo sucesso do reino antes de se dirigir às cozinhas.
Atravessou depois o bairro em direcção ao paço, que já via por entre os
telhados. Era um conjunto estranho, construído ao longo de várias décadas por vários
reis que haviam adicionado novos andares, salas e salões, criando o que ao
longe mais parecia uma pequena aldeia com telhados de diferentes alturas,
pátios e capelas. Raramente lá ia, porque as cozinhas e todos os edifícios
destinados aos criados ficavam numa zona à parte e era aí que fazia o seu
trabalho, de supervisionar as doceiras que confecionavam as sobremesas e os
doces com que a família real e a corte terminavam as refeições. A azáfama nas
cozinhas era sempre muito grande, com várias dezenas de criados ocupando-se dos
diferentes afazeres que uma cozinha real implicava. No pátio da entrada, a um
canto, várias garotas depenavam galos e galinhas e descascavam os legumes que
iriam depois ser usados nos guisados. Dentro do grande salão, há horas que os
assadores tinham posto os animais no espeto e os padeiros haviam começado a fazer
o pão e a massa das tartes. Esse lado da cozinha era sempre o mais fumarento, as
grandes chaminés esforçando-se para dar vazão às fogueiras e aos fornos instalados
num pequeno vão. Ali dona Mécia podia ainda ver vários criados de volta de
largos panelões suspensos sobre as lareiras, onde se começavam os ensopados de
grão, favas e carne. O recheio das tartes de miúdos já fritava nas grandes sertãs,
normalmente penduradas em fileiras ao longo das paredes, deitando o doce aroma
das especiarias e ervas aromáticas que as temperavam. Estas amontoavam-se em
pequenos cestos de verga, espalhados pela grande cozinha para que todos
pudessem chegar-lhes. Por todo o lado ecoava o som dos almofarizes, onde se
moíam as ervas locais e se faziam misturas com alguns preciosos produtos vindos
do Oriente, que só alguns naquela cozinha sabiam e podiam usar». In
Inês Ribeiro e Raquel Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2015, ISBN 978-989-626-706-3.
Cortesia
de EdosLivros/JDACT