Barcelona
«(…) Umas pancadas na porta vieram tirá-lo do seu ensimesmamento. Não
fazia a mais pequena ideia de há quanto tempo ali se encontrava, sentado ao
lado do cadáver. Mas assim que as pancadas lhe perturbaram o estado de
espírito, pôs-se de pé devagar, como se o corpo lhe pesasse e encaminhou-se
para a porta. O seu amigo Moshe, o dono do talho, estava diante dele com um ar
de desculpa no olhar. Abraão, lamento imenso o meu comportamento de há bocado,
não tinha o direito de julgar-te tão severamente, peço-te perdão. O seu olhar
exprimia um tal arrependimento que o médico não pôde impedi-lo de entrar,
divertido com os escrúpulos do amigo. Entra, velho judeu rabugento, estava a
pensar ir ter contigo daqui a pouco. Como está o teu doente? Conseguiste que
melhorasse? Precisas de alguma coisa? Moshe não sabia como desculpar-se. Morreu
há bocadinho. Pouco pude fazer contra um veneno tão poderoso como o que usaram
para lhe roubar avida, respondeu Abraão, convidando-o a entrar na pequena
divisão que lhe servia de sala de jantar. Veneno!, exclamou Moshe. Abraão
contou-lhe a história sem lhe ocultar coisa alguma, precisava de falar com
alguém e conhecia Moshe desde sempre. Apesar de ser um pouco mais novo do que
ele, tinham sido criados juntos desde crianças e tinham mantido sempre uma fiel
amizade. Moshe fora sempre um conservador, como o pai, seguira a tradição
familiar no ofício e casara-se com quem a família decidira, apesar de Abraão ter
sempre sabido que ele estava profundamente apaixonado pela sua irmã Miriam e
que esta lhe correspondia. Mas aqueles infelizes jovens não se atreveram a
enfrentar as consequências e os resultados não haviam sido bons. A esposa de
Moshe era uma mulher autoritária e orgulhosa que o desprezava, e a sua querida irmã
Miriam tinha por marido um rabino rígido que lhe fizera desaparecer do rosto o
sorriso.
O mundo ordenado e rotineiro de Moshe sofreu um sobressalto ao ouvir a
história do amigo. Admirava Abraão desde criança, sabia que possuía a amizade
de um homem sábio que o respeitava e lhe queria. Deus esteja connosco, Abraão!
Meteste-te num rico sarilho. E este pobre homem, morto em tua casa. Que vamos
nós fazer? Abraão sorriu ao ouvir o amigo usar o plural, imerso na história,
realmente preocupado com a sua integridade. Tu vais voltar para casa e não
dizes nada a ninguém. Se te perguntarem por mim, dirás que voltei a partir para
tratar de um doente e que não sabes quando volto. - Mas Abraão as pessoas podem
pensar que não regressaste da Palestina, o melhor seria... Não, Moshe, atalhou
o médico, é perfeitamente possível que alguém me tenha visto chegar ao Call, e sabes como correm as notícias
neste bairro, parece que ninguém te vê, e acabas por ser o assunto principal de
conversa na sinagoga. O melhor é cingirmo-nos o mais possível à verdade. Quanto
a mim, farei o que Guils me pediu antes de morrer: irei à Casa do Templo e
contar-lhes-ei a história. Tens razão, é o melhor, assentiu Moshe, convencido. É
uma sorte que toda esta confusão dependa do Templo e não do aguzil real. Mas
Abraão, já pensaste com quem vais falar? Não podes apresentar-te ali e dizer tenho
um morto que vos pertence... Não te preocupes, tenho um bom amigo na Casa, um
de toda a confiança. Mas preciso que me faças um favor, mantém os ouvidos bem
abertos, informa-te se alguém me viu chegar e fala com a minha cunhada. Podes
contar-lhe que já cheguei, mas que uma urgência médica me obrigou de novo a
partir. Não dês demasiadas explicações, ser demasiado loquaz é a maneira mais
fácil de apanhar um mentiroso.
Abraão mandou embora o amigo, dando-lhe as últimas
instruções. Depois entrou de novo no quarto onde Guils já não sentia nem dor nem
tristeza. Aquela forma humana que o lençol escondia empreendera uma viagem que ninguém
podia partilhar. Revistou-lhe novamente as roupas, tacteando cada centímetro de
tecido, procurando nas costuras e nos bolsos, mas não encontrou nada. Pensou que
era possível que tudo aquilo fizesse parte de uma alucinação provocada pelo veneno,
mas qualquer coisa lá no íntimo lhe dizia que era verdade. Uma das razões era a
própria morte de Guils, o seu assassinato. Era preciso uma boa razão para
acabar com a vida de um homem e a existência daquele embrulho podia ser uma causa
legítima para matar». In Núria Masot, A Sombra do Templário,
colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.
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