«Em
todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior
escondido». In Raul Brandão
«(…)
Silvestre abriu a janela e deitou uma vista de olhos para fora. Nada de novo.
Pouca gente passava na rua. Não muito longe, uma mulher apregoava fava-rica.
Silvestre não chegava a perceber como vivia aquela mulher. Nenhum dos seus
conhecidos comia fava-rica, ele próprio não a comia há mais de vinte anos.
Outros tempos, outros costumes, outras comidas. Resumida a questão nestas
palavras, sentou-se. Abriu a onça, pescou as mortalhas na barafunda de objectos
que pejavam a banca, e fez um cigarro. Acendeu-o, saboreou uma fumaça e deitou
mãos ao trabalho. Tinha umas gáspeas a pôr, e aí estava uma obra em que sempre
aplicava todo o seu saber. De vez em quando, relanceava os olhos para a rua. A
manhã ia aclarando pouco a pouco, embora o céu estivesse coberto e houvesse na
atmosfera um ligeiro véu de névoa que esbatia os contornos das coisas e das
pessoas. Na multidão de ruídos que já enchia o prédio, Silvestre começou a
distinguir um bater de saltos nos degraus da escada. Identificou-os
imediatamente. Ouviu abrir a porta que dava para a rua e debruçou-se: Bom dia,
menina Adriana! Bom dia, senhor Silvestre. A rapariga parou debaixo da janela.
Era baixinha e usava óculos de lentes grossas que lhe transformavam os olhos em
duas bolinhas minúsculas e inquietas. Estava a meio do caminho dos trinta aos
quarenta anos, e já um que outro cabelo branco lhe riscava o penteado simples. Então,
ao seu trabalho, heim? É verdade. Até logo, senhor Silvestre. Era assim todas
as manhãs. Quando Adriana saía de casa já o sapateiro estava à janela do
rés-do-chão. Impossível escapar sem ver aquela gaforina desgrenhada e sem ouvir
e retribuir os inevitáveis cumprimentos. Silvestre seguiu-a com os olhos.
Assim, de longe, parecia, na comparação pitoresca do sapateiro, um saco mal
atado. Chegada à esquina da rua, Adriana voltou-se e acenou um adeus para o
segundo andar. Depois, desapareceu. Silvestre largou o sapato e torceu a cabeça
para fora da janela. Não era bisbilhoteiro, mas gostava das vizinhas do
segundo, boas freguesas e boas pessoas. Com a voz alterada pela torção do
pescoço, saudou: viva, menina Isaura! Que tal o dia, hoje? Do segundo andar,
atenuada pela distância, veio a resposta: não está mau, não. O nevoeiro... Não
se chegou a saber se o nevoeiro prejudicava, ou não, a beleza da manhã. Isaura
deixou morrer o diálogo e fechou a janela devagar. Não desgostava do sapateiro,
do seu ar a um tempo reflectido e risonho, mas nessa manhã não sentia ânimo
para conversar. Tinha um monte de camisas para acabar até ao fim da semana.
Sábado tinha que entregá-las, desse lá por onde desse. Por sua vontade,
acabaria de ler o romance. Só lhe faltavam umas cinquenta páginas e estava na
passagem mais interessante. Aqueles amores clandestinos, sustentados através de
mil peripécias e contrariedades, prendiam-na. Além disso, o romance estava bem
escrito. Isaura tinha experiência bastante de leitora para assim julgar.
Hesitou. Mas bem via que nem sequer tinha o direito de hesitar. As camisas
esperavam-na. Ouvia lá dentro um ruído de vozes: a mãe e a tia falavam. Muito
falavam aquelas mulheres. Que tinham elas a dizer todo o santo dia, que não
estivesse já dito mil vezes? Atravessou o quarto onde dormia com a irmã. O
romance estava à cabeceira. Lançou-lhe os olhos vorazes, mas seguiu. Parou
diante do espelho do guarda-vestidos que a refletia da cabeça aos pés. Trazia
uma bata caseira que lhe modelava o corpo esguio e magro, mas flexível e
elegante. Com as pontas dos dedos percorreu as faces pálidas onde as primeiras
rugas abriam sulcos finos, mais adivinhados que visíveis. Suspirou para a imagem
que o espelho lhe mostrava e fugiu dela. Na cozinha, as duas velhas continuavam
a falar. Muito parecidas, os cabelos todos brancos, os olhos castanhos, os
mesmos vestidos negros de corte simples, falavam com vozinhas agudas e rápidas,
sem pausas e sem modulação: já te disse. O carvão é só terra. É preciso ir
reclamar à carvoaria, dizia uma. Está bem, respondia a outra. Que estão a
dizer?, perguntou Isaura, entrando. Uma das velhas, a de olhar mais vivo e de
cabeça mais erecta, respondeu: é o carvão que é uma lástima. Tem que se
reclamar. Está bem, tia. Tia Amélia era, por assim dizer, a ecónoma da casa.
Era ela quem cozinhava, fazia contas e dividia as rações pelos pratos. Cândida,
a mãe de Isaura e Adriana, tratava dos arranjos domésticos, das roupas, dos
pequenos bordados que ornamentavam profusamente os móveis e dos solitários com
flores de papel que só eram substituídas por autênticas flores nos dias
festivos. Cândida era a mais velha, e, tal como Amélia, viúva. Viúvas a que a
velhice já tranquilizara. Isaura sentou-se à máquina de costura. Antes de
começar o trabalho, olhou o rio que se estendia muito largo, com a outra margem
oculta pelo nevoeiro. Parecia o oceano. Os telhados e as chaminés estragavam a
ilusão mas, mesmo assim, fazendo força para os não ver, o oceano surgia nos
poucos quilómetros de água. Uma alta chaminé de fábrica, à esquerda,
esborratava o céu branco com golfadas de fumo». In José Saramago, Claraboia,
1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
Cortesia
ECaminho/JDACT