O
Caçador de Livros
«(…)
Se tivesse tentado explicar a um curioso o que estava querendo ali, o mistério
de sua identidade teria se aprofundado ainda mais. Numa cultura com uma
alfabetização muito limitada, um interesse por livros já era bizarro. E como
Poggio poderia explicar a natureza ainda mais bizarra de seus interesses
particulares? Ele não estava em busca de livros de horas, ou missais, ou hinários
cujas belíssimas iluminuras e encadernações esplêndidas deixassem óbvio o seu
valor até para os analfabetos. Esses livros, alguns incrustados de jóias e com
páginas com bordas de ouro, muitas vezes ficavam trancados em
caixas especiais ou acorrentados aos púlpitos e às prateleiras, para que
leitores de mãos leves não pudessem fugir com eles. Mas estes não tinham encantos
especiais para Poggio. E ele também não se sentia atraído pelos tomos lógicos,
médicos ou jurídicos que constituíam as ferramentas de prestígio das elites profissionais.
Esses livros tinham o poder de impressionar e até intimidar quem não sabia lê-los.
Eram cercados de uma mágica social, como a que normalmente se associa a eventos
desagradáveis: um processo legal, um inchaço doloroso na virilha, uma acusação
de bruxaria ou de heresia. Uma pessoa comum teria entendido que volumes desse tipo
tinham dentes e garras, e teria entendido por que uma pessoa inteligente
poderia estar atrás deles. Mas aqui também a indiferença de Poggio era
desconcertante.
O
estrangeiro estava indo a um mosteiro, mas não era padre, teólogo ou
inquisidor, e não estava em busca de livros de oração. Procurava velhos
manuscritos, muitos deles mofados, carcomidos de traças e praticamente
indecifráveis até para os leitores mais treinados. Se as folhas de pergaminho
em que esses livros eram escritos ainda estivessem intactas, teriam certo valor
monetário, já que poderiam ser cuidadosamente raspados com facas, amaciados com
talco e usados novamente. Mas Poggio não estava no ramo de pergaminhos usados,
na verdade detestava quem raspava as letras antigas. Ele queria ver o que
estava escrito ali, mesmo que a grafia fosse intricada e difícil, e estava
interessado acima de tudo em manuscritos que tivessem quatrocentos ou
quinhentos anos, que viessem, portanto do século X ou até antes. A não ser para
um punhado de pessoas na Alemanha, essa busca, caso Poggio tivesse exposto o
que era, teria parecido estranha. E teria parecido ainda mais estranha se
Poggio tivesse explicado que na verdade não tinha o menor interesse no que foi escrito
quatrocentos ou quinhentos anos atrás. Ele desprezava aquela época, a
considerava um poço de superstição e ignorância. O que realmente queria achar
eram palavras que nada tinham a ver com o momento em que foram escritas no
pergaminho antigo, palavras que na melhor das hipóteses não estivessem
contaminadas pelo universo mental do reles escriba que as copiara. Aquele
escriba, Poggio esperava, estava aplicada e acuradamente copiando um pergaminho
ainda mais antigo, feito por outro escriba cuja vida humilde também não tinha
qualquer interesse para o caçador de livros a não ser o facto de ter deixado
essa marca. Se a maré de sorte quase miraculosa se mantivesse, o manuscrito
anterior, havia muito desaparecido na poeira, era por sua vez uma cópia fiel de
um manuscrito mais antigo e aquele manuscrito, cópia de um outro. Agora finalmente
a caçada ficava interessante para Poggio, e o
coração de caçador dentro do peito dele batia acelerado. Os rastros estavam
levando de volta a Roma, não à Roma contemporânea, da corrompida corte papal,
das intrigas, da debilidade política e dos surtos periódicos de peste bubónica,
mas a Roma do Fórum e do Senado e de um latim cuja beleza cristalina o enchia
de encanto e de desejo por um mundo perdido.
O
que isso tudo poderia querer dizer para qualquer sujeito de pés no chão, no sul
da Alemanha, em 1417? Ao ouvir
Poggio, um supersticioso poderia ter suspeitado de um caso singular de
feitiçaria, a bibliomancia; um homem mais sofisticado poderia
ter diagnosticado uma obsessão psicológica, a bibliomania; um homem de fé
poderia ter-se perguntado por que uma alma sadia sentiria uma atracção
passional pelo tempo anterior ao momento em que o Salvador trouxe aos pobres
pagãos a promessa da redenção. E todos teriam feito a óbvia pergunta: a quem
este homem serve? O próprio Poggio teria encontrado dificuldade
para responder. Até pouco tempo antes ele era um servo do papa, como tinha sido
de vários outros pontífices romanos. A sua ocupação era a de scriptor, ou seja, redactor profissional
de documentos na burocracia papal, e, empregando sagacidade e astúcia, tinha
chegado à invejada posição de secretário apostólico. Ele ficava assim à disposição
para escrever as palavras do papa, registar as suas decisões soberanas, redigir
num latim elegante a sua extensa correspondência internacional. Num esquema
formal de corte, em que a proximidade física com o soberano absoluto era um bem
de importância central, Poggio era um homem importante. Ele escutava enquanto o
papa sussurrava alguma coisa ao seu ouvido; respondia com outro sussurro;
conhecia o significado dos sorrisos e das caras fechadas do papa. Tinha acesso,
como sugere a própria palavra secretário, aos segredos do papa. E aquele papa
era cercado de muitos segredos». In Stephen Greenblatt, The Swerve, O Nascimento
do Mundo Moderno, A Virada, 2011, tradução de Caetano Galindo, Companhia das
Letras, 2012, ISBN 978-853-592-114-4.
Cortesia
da CdasLetras/JDACT