De
acordo com o original
D.
Maria
«(…) Epiphaneo
vivia em companhia de dois filhos: a febre entrou n’essa casa e com ella a morte;
o filho mais novo succumbiu á doença. Então aquelle coração de artista que era
um grande coração de pae, sentiu-se ferido do mesmo golpe. Passara as noites ao
pé do leito do doente, e, dias depois da morte de seu filho, o grande actor
caiu também ao sopro pestífero do mesmo mal que lho roubara. A impressão que aquella
morte lhe produzira havia sido profunda e irremediável; não sei bem se foi a
febre amarella, se a falta do filho, o que o matou!... De quantos artistas
ensinou na sua longa carreira de mestre de theatro, a primeira, a única que
chegou realmente a attingir proporções notáveis, foi Josepha, Soller. A infeliz
Soller! Os elementos pareceram sempre ora querer, ora não querer que ella fosse
actriz! Declamára aos três annos n’um theatro, de que era empresário o seu pae:
volvêra á scena aos cinco annos, e a intelligencia precoce que revelava era a
melhor garantia do talento dramatico, que, com o tempo e o estudo, poderia dar
ao seu nome, um dia, a aureola dos triumphos. Todavia um gosto natural pela
dança arredou por muito tempo da arte
dramática esta creatura, que invejava, talvez, o prestigio, a elegância, a
graça voluptuosa das dançarinas, creaturas excepcionaes que os rapazes applaudem
sempre com maior capricho, e maior enthusiasmo.
Realmente,
dou razão em parte á Soller! As dançarinas, quando teem a fortuna de não
brilharem apenas pela arte, mas também pela belleza, e que deixam campo ás
primeiras illusões da vida para acceitar n’ellas a incarnação de um sonho,
qualquer coisa de sublime, e desligado das existências terrestres, entes
maravilhosos que se elevam sobre o pó, como o atomo se ergue e se perde na
atmosphera fluctuante, impellido pelo calor das manhãs do estio..., são verdadeiras
creações de poeta, que incendeiam a imaginação e a alma! Por mais que se
teimasse e insistisse, por maiores, mais activas e constantes diligencias, que
a familia empregasse, para que a Soller n’um paiz tão escasso de actrizes
preferisse a carreira dramática, que não devia apenas ser-lhe mais lucrativa,
porém mais brilhante, a obstinada creança proseguia no seu intento, e porfiava
em seguir, como dizem os choreographos, questa philosofica arte della danza!
Uma desgraça, porém, tinha de cortar-lhe a carreira. A pobre dançarina,
encontrou-se subitamente impossibilitada de proseguir na sua mania! Uma
extenção nervosa, na perna esquerda, resistiu a todos os esforços da medicina,
e obrigou-a a afastar dos horisontes do tacté e do balloné as
suas aspirações e as suas tendências!
Desgraçadas
dançarinas, a quem não é preciso mais do que pôr um pé em falso, para verem a
sua carreira cortada, tornar-se infructifero todo o estudo dos primeiros annos,
e cahirem por terra, luctuosos, humildes, desenganados, os sonhos de
prosperidade e de gloria que lhes haviam dado coragem de trabalhar! Pois que! o
nome, a gloria, o futuro de uma creatura, cujo merecimento parecia
assegurar-lhe os destinos da illustração e da celebridade, estão por tal forma
escravos e dependentes da felicidade de um battement, que, bastando uma
piroeta para torcer uma linha, seja uma linha torcida o sufficiente para deixar
sem fortuna, sem destino, e sem pão um ente infeliz, que teve a sorte de pôr o
seu talento nas pontas dos pés?! Não houve remédio.
Quando
a rapariga viu que estava de perninha para todo o sempre, deixou-se de
médicos e mandou chamar dilletanti. Acudiram os janotas do tempo, os
grandes práticos das fortunas e dos revezes de theatro. Que hei-de fazer?
perguntou ella. Vae ser actriz! disse Álvaro. Vae ser trágica! disse-lhe José
Vaz. Vae-te ás soubrettes! aconselhou João Menezes. Vae ás ingénuas!
disse o marquez de Niza. Depois, todos elles, em alto diagnostico, lhe predisseram:
Serás grande! Trata d’isso. Custou-lhe ao principio. A fatalidade que a
opprimia foi-lhe tanto mais penosa, que estava para partir para Vienna d’Áustria
na companhia de Mabille, que quatro annos depois deu ordem expressa á irmã de madame
Santy de a escripturar se já estivesse restabelecida; a esse tempo, porem, a
Soller… estava actriz. Actriz! Existência de sensações e gloria, a que ella não
aspirava, que não pedia, com que não sympathisava até! Singular destino, que a forçou
a valer-se do talento, a reconhecel-o, a educal’o, a deixar que o publico a
admirasse e applaudisse! Comediante como sua mãe, a Vasquez Corunha, como seu
pae José Soller, Valença, que tomou o nome de Navarro, porque, fugindo á
familia para seguir a vida de actor, quiz crear elle o seu nome para a gloria ou
opprobrio que lhe coubesse! Oh! ella tinha de ser actriz; e debalde o seu
capricho, por louca phantasia de creança, tentava talvez suffocar a vehemencia
de uma vocação, que a natureza ou o destino tornaria um dia invencivel e irreconciliável!»
In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo
Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar
1968, University of Toronto.
Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT