«Outrora
havia; outrora não havia. As criaturas de Deus eram abundantes como grãos. E
falar demais era um pecado...»
Canela
«(…) Mesmo assim Zeliha comprou um pouco de canela; não em pó, mas em pau. O vendedor ofereceu-lhe chá, um cigarro e uma conversa, e ela não recusou nenhum dos três. Enquanto sentava e conversava, os seus olhos examinaram displicentemente as prateleiras até se fixarem num jogo de copos para chá. Aquilo também estava na lista das coisas a que não conseguia resistir: copos de vidro com estrelas douradas, colheres finas e delicadas, pires frágeis com faixas douradas cingindo os ventres. Já devia haver pelo menos trinta jogos de copo para chá diferentes na sua casa, todos comprados por ela. Mas não faria mal comprar outro, pois quebravam-se com muita facilidade. São tão frágeis..., murmurou Zeliha. Era a única entre todas as mulheres Kazanci que se enfurecia quando os copos de chá quebravam. Enquanto isso Petite-Ma, nos seus 77 anos, abordava a questão de um modo totalmente diferente. Lá se vai outro mau-olhado!, exclamava ela cada vez que um copo de chá rachava ou se espatifava. Ouviu aquele som agourento? Craque! Ah, ecoou no meu coração! Foi o mau-olhado de alguém, invejoso e malicioso. Que Alá proteja todas nós! Sempre que um copo quebrava ou um espelho rachava, Petite-Ma suspirava de alívio. Já que não se podia eliminar completamente as pessoas más da superfície deste mundo louco, era muito melhor que o seu mau-olhado caísse sobre o vidro do que penetrasse as almas inocentes de Deus e estragasse as suas vidas. Vinte minutos depois, ao entrar correndo num escritório chique de um dos bairros mais abastados da cidade, Zeliha levava um salto quebrado numa das mãos e um novo jogo de copos de chá na outra. Uma vez lá dentro, lembrou desalentada que deixara o embrulho dos pauzinhos de canela no Grande Bazar.
Havia três mulheres na sala de espera, cada qual com um cabelo horrível e um homem quase sem cabelo nenhum. Pelo modo como se sentavam, Zeliha notou logo e deduziu cinicamente que a mais jovem era a menos preocupada de todas, folheando languidamente as fotos de uma revista feminina, preguiçosa demais para ler os artigos, tendo vindo provavelmente para renovar a receita de pílulas anticoncepcionais; a loura gorducha junto à janela, que parecia ter trinta e poucos anos e cujas raízes negras dos cabelos imploravam para ser pintadas, balançava nervosamente os pés, a sua mente aparentemente longe, provavelmente ali para um check-up de rotina e o exame de papanicolau. A terceira, de véu na cabeça e que viera com o marido, parecia a menos tranquila de todas; os cantos da boca puxados para baixo, as sobrancelhas unidas. Zeliha imaginou que ela tivesse problemas para engravidar. Bem, dependendo da perspectiva da pessoa, isso poderia ser perturbador. Ela pessoalmente não via a infertilidade como a pior coisa que pudesse acontecer a uma mulher. A senhora, por favor!, chilreou a recepcionista, forçando um sorriso tolo e falso, mas tão bem treinado que não parecia tolo ou falso. A sua consulta está marcada para as três horas? Como tinha dificuldade em pronunciar a letra r, a recepcionista parecia compensar isso com um grande esforço para acentuar o som e elevar a voz, oferecendo ainda um sorriso extra sempre que a sua língua tropeçava naquela letra agourenta. Para lhe poupar o fardo, Zeliha concordou constantaneamente com a cabeça, talvez de um modo vigoroso demais. E está aqui para que exactamente, senhora das três horas? Zeliha tentou ignorar o absurdo daquela pergunta. Agora já sabia muito bem que era exactamente essa animação feminina incondicional e abrangente que lhe fazia tanta falta na vida. Algumas mulheres são sorridentes devotadas; sorriem com um espartano senso de dever. Zeliha imaginava como era possível aprender a fazer com tanta naturalidade algo tão pouco natural. Mas pondo de lado a pergunta que ecoava em sua mente, ela respondeu-lhe: um aborto.
A palavra pairou no ar, e todos esperaram que finalmente caísse. Os olhos da recepcionista tornaram-se menores, depois maiores, enquanto o seu sorriso desaparecia. Zeliha não pôde evitar sentir o alívio. Afinal de contas, a animação feminina incondicional e abrangente provocava nela um espírito vingativo. Tenho uma consulta..., disse Zeliha, enfiando um anel de cabelo para trás da orelha e deixando o resto cair sobre seu rosto e ombros como uma burca espessa e negra. Ergueu o queixo, acentuando o seu nariz aquilino, e sentiu necessidade de repetir, num tom mais alto do que pretendia. Ou talvez não. Porque preciso fazer um aborto». In Elif Shafak, De Volta a Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN 978-989-875-237-6.
Cortesia de EBF/JEditora/JDACT