quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A Cultura Integral do Indivíduo. Problema Central do Nosso Tempo. 1933. Bento de Jesus Caraça. «À falência completa no campo moral, vem juntar-se, como é do conhecimento de todos, a falência total no campo económico»

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«(…) Contra esse regime social, levantam-se de todos os lados os protestos e as flagelações; vamos ver dois exemplos. Ouçamos, em primeiro lugar, o que a este respeito diz Harold Laski, professor da Universidade de Londres, no seu livro Gramática da Política: podem resumir-se brevemente os resultados deste sistema. A produção efectua-se com desperdícios e sem plano conveniente. As comodidades, os serviços necessários à vida da comunidade, não são repartidos de modo a satisfazer as necessidades ou a produzir o máximo de utilidade social. Construímos cinemas sumptuosos e temos falta de casas de habitação. Gastamos em navios de guerra o dinheiro necessário para as escolas. Os ricos podem gastar num só jantar o salário semanal de um operário, enquanto o operário não pode enviar à escola os filhos insuficientemente alimentados. Uma rapariga rica gastará no seu primeiro vestido de baile mais que o salário anual dos trabalhadores que o fizeram. Em suma, produzimos comodidades inúteis e distribuímo-las sem atender às necessidades sociais. Mantemos num parasitismo ocioso uma vasta classe cujos gostos exigem que capital e trabalho concordem em satisfazer necessidades sem nenhuma relação com os interesses humanos. E esta classe não se põe à margem da comunidade. Como tem o poder de tornar as suas exigências eficazes, estimula a imitação servil daqueles que procuram misturar-se a ela. A riqueza transforma-se em padrão de medida do mérito; e a recompensa da riqueza é a capacidade de fixar os níveis daqueles que procuram adquiri-la. Esses níveis são fixados, não para satisfação de um fim moral, mas do desejo de ser rico. Os homens podem começar a adquirir bens para assegurar a sua existência, mas continuam a adquirir para alcançar a distinção que lhes confere a propriedade. Ela satisfaz a sua vaidade e o seu amor do poder; permite-lhes harmonizar a vontade da sociedade com a sua. Resulta daqui o que pode logicamente esperar-se de uma tal ambiência. Produzem-se bens e serviços, não para os utilizar, mas para tirar da sua produção elementos de posse. Produz-se para satisfazer, não exigências legítimas, mas aquelas que são susceptíveis de render. Aniquilam-se as fontes naturais de riqueza. Falsificam-se as comodidades. Lançam-se negócios fraudulentos. Corrompem-se os legisladores. Falsificam-se as fontes do saber. Realizam-se alianças artificiais para aumentar o preço das comodidades. Exploram-se, com uma crueza por vezes terrível, as raças atrasadas da humanidade...
Isto diz o professor Laski. Demos agora a palavra a Oliveira Salazar, o qual, num discurso recentemente pronunciado em Lisboa, menos violento nos termos, não formulou, no entanto, uma crítica menos condenatória. São suas estas palavras, que transcrevo do Século de 17 de Março de 1933: nós adulterámos o conceito de riqueza, desprendemo-la do seu fim próprio de sustentar com dignidade a vida humana, fizemos dela uma categoria independente que nada tem que ver com o interesse colectivo nem com a moral e supusemos que podia ser finalidade dos indivíduos, dos Estados ou das Nações, amontoar bens sem utilidade social, sem regras de justiça na sua aquisição e no seu uso. Nós adulterámos a noção de trabalho e a pessoa do trabalhador... Pois muito bem. É para sustentar isto que se cria e desenvolve, por toda a parte, um aparelho repressivo de cuja actuação brutal todos os dias temos novas afirmações. À falência completa no campo moral, vem juntar-se, como é do conhecimento de todos, a falência total no campo económico. A proletarização de vastas camadas da população de todo o mundo, a destruição dos meios de consumo, que a todo o momento se realiza, no meio de povos a quem falta o indispensável, a existência de dezenas de milhões de desempregados, são factos que falam bem eloquentemente por si e dispensam, por isso, comentários.
Nunca se viu um anquilosamento tão completo e tão rápido de uma classe dirigente e nunca se viu também um tão grande apego ao poder. É que a crise atinge os fundamentos da orgânica. Por isso, como dizia acima, a luta é mais crua do que nunca. É também mais ampla do que nunca, precisamente porque os alicerces estão atingidos. Há alguns séculos, os destinos de um agrupamento social jogavam-se no próprio local em que o agrupamento vivia. Hoje, o futuro de nós, portugueses, joga-se tanto em Portugal, como em Nova York ou nas planícies do norte da China. O desenvolvimento do nacionalismo foi a obra do século XIX, o do internacionalismo será a do século XX. Estas palavras, proferidas há pouco na Sorbonne por Lord Lytton que, por encargo da Sociedade das Nações, presidiu à comissão que foi à China investigar das causas do conflito sino-japonês, merecem ser meditadas pelos adeptos do nacionalismo. Não por aqueles para quem a pátria é um balcão de compra e venda, esses não precisam de pensar, nem têm tempo para isso; mas pelos que, nem estarem num campo errado, merecem menos consideração e respeito, desde que nele militem com boa fé e desinteresse. Poucas questões há que tenham sido tão mal postas como esta do nacionalismo e isso não admira, pois foram sempre as águas turvas o ambiente propício para as manobras de certos pescadores... Se ser nacionalista é, reconhecendo a existência de grupos étnicos com características próprias, trabalhar pelo desenvolvimento desses grupos (nações), defender e propulsionar a autonomia das suas instituições de vida e cultura, num largo espírito de colaboração com os outros grupos étnicos, como pode deixar de ser-se abertamente, francamente, nacionalistas?» In Bento de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939.

Cortesia de Seara Nova/JDACT