quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «Willalme era um tipo de poucas palavras. E entrando no quarto acrescentou: lembra-te que amanhã tens de partir ao nascer do dia. É preciso que ninguém veja para onde te diriges»

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«(…) Chovia. As nuvens davam lugar ao rubor do crepúsculo. Bandos de andorinhas estridentes rodopiavam no ar acompanhadas por um vento com cheiro a salsugem. Chegados à hospedaria, Hulco dirigiu-se aos visitantes. Os últimos raios da luz do dia iluminavam aquele corpo sem graça. Debaixo de um barrete esfarrapado espreitavam tufos de cabelo eriçados e um nariz verrugoso. Um casaco imundo e um par de calças coçadas nos joelhos completavam o retrato miserável. Domini ilustrissimi, balbuciou. Seguiu-se uma lengalenga macarrónica, indizível, da qual se percebeu: Os senhores desejam que leve para dentro o baú? Depois de um aceno afirmativo, o servo retirou a caixa do carrinho de mão e transportou-a com dificuldade para o interior do edifício. A hospedaria era quase integralmente feita de madeira, com as paredes revestidas com caniços entrelaçados. À entrada, por detrás de um balcão, estava um sujeito com uma casaca de algodão e dois olhos de coruja. Ginesio, o encarregado, saudou os peregrinos e declarou que o abade ordenara que lhes fosse reservado o quarto mais confortável. Saindo, a terceira porta à direita leva ao vosso quarto, informou com um sorriso brincalhão, apontando para uma escadaria que subia até ao andar de cima. Se precisardes de qualquer coisa, pedi a mim mesmo. Boa estada.
Ignazio e Willalme seguiram as instruções de Ginesio. Transpostos os degraus, em breve se encontraram em frente de uma porta de madeira. Um verdadeiro luxo, comentou o mercador, habituado a pernoitar em dormitórios colectivos onde os catres eram apenas separados por simples cortinas. Hulco, exausto, parou em frente dos hóspedes. Fica bem aqui, obrigado, agradeceu Ignazio. Podes voltar para os teus trabalhos. O servo pousou o baú, inclinou a cabeça para se despedir e afastou-se com a já familiar forma de andar desengonçada. Assim que ficaram a sós, Willalme perguntou: E agora, o que fazemos? Antes de tudo, escondemos o baú, respondeu o mercador. Depois vamos jantar. O abade espera-nos à sua mesa. Penso que não terá simpatizado comigo, o teu abade, comentou o francês. Ignazio sorriu: mas fazes muita questão em tê-lo como amigo? Como era de esperar não obteve resposta. Willalme era um tipo de poucas palavras. E entrando no quarto acrescentou: lembra-te que amanhã tens de partir ao nascer do dia. É preciso que ninguém veja para onde te diriges.

O mosteiro de Santa Maria del Mare erguia-se sobre a laguna, perto da costa do mar Adriático. Embora não fosse particularmente imponente, nos dias soalheiros dominava as superfícies desertas circundadas por canais e pântanos. O edifício remontava ao primeiro decénio do ano mil. Visto do exterior, era percorrido por uma série de pequenas janelas como que incrustadas no meio das paredes. A fachada era virada a este. Do lado esquerdo, além de um modesto campanário, existia uma série de edifícios encostados uns aos outros: o refeitório, as cozinhas e o dormitório dos monges. Do lado contrário, os estábulos e a hospedaria, onde se instalavam viajantes de todo o tipo. A maior parte dos que aqui chegavam fazia o percurso de Ravena para Veneza. Com frequência dirigiam-se a lugares sagrados, aos mosteiros da Alemanha e da França ou ao Camino de Santiago de Compostela. Outros, pelo contrário, dirigiam-se para o Mezzogiorno, tendo como destino o Templo de San Michele Arcangelo del Gargano». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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