sábado, 19 de dezembro de 2015

Nasci para Nascer Pablo Neruda. «Vi chegar a leprosa. Ficou estendida junto da mata de azáleas que sorri no abandono do hospital. Quando chegar a noite, a leprosa partirá. A leprosa partirá, porque o hospital não a recebe. Partirá quando o dia for mergulhando suavemente no entardecer, mas até o dia prolongará os seus clarões amarelos…»

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«[…] nasci para nascer, para impedir a passagem daquilo que se aproxima, daquilo que me bate no peito como um novo coração palpitante». In Pablo Neruda

É muito cedo
Mulher distante
«Esta mulher cabe nas minhas mãos. É branca e loura, e levá-la-ia nas minhas mãos como uma cesta de magnólias. Esta mulher cabe nos meus olhos. Envolve-a o meu olhar, o meu olhar que nada vê quando a envolve. Esta mulher cabe nos meus desejos. Despida, está sob a anelante labareda da minha vida e queima-a o meu desejo como uma brasa. Todavia, mulher distante, as minhas mãos, os meus olhos e os meus desejos conservam inteira a sua carícia, porque só tu, mulher distante, só tu cabes no meu coração.

Um amor
Pol ti, junto dos jardins recém-florescidos afligem-me os perfumes da Primavera. Esqueci o teu rosto, não recordo as tuas mãos, como beijavam os teus lábios? Por ti, amo as alvas estátuas adormecidas nos parques que não têm voz nem olhos. Esqueci a tua voz, a tua voz alegre, esqueci os teus olhos. Como uma flor ao seu perfume, estou ligado à tua recordação imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida, se me tocares, magoar-me-ás irremediavelmente. Envolvem-me as tuas carícias como as trepadeiras às paredes sombrias. Esqueci o teu amor e, não obstante, adivinho-te por detrás de todas as janelas. Por ti, afligem-me os pesados perfumes do Estio: por ti, torno a vislumbrar os sinais que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objectos que caem.

Ventos da noite
Como uma bambolina, a Lua deve culminar nas alturas. Ventos da noite, tenebrosos ventos! Que rugem e fendem as ondas do céu, que pisam, com os pés de rocio, os telhados. Estendido, dormindo enquanto as ébrias ressacas do céu se desmoronam, bramindo, no pavimento. Estendido, dormindo, quando as distâncias terminam e voam trazendo aos meus olhos o que estava longe. Ventos da noite, tenebrosos ventos! Que asas tão pequenas as minhas neste tremendo bater de asas! Que grande é o mundo diante da minha garganta contraída! No entanto, posso, se quero, morrer, estender-me na noite para que me arraste a raiva do vento. Morrer, estender-me adormecido, voar na violenta maré, cantando, estendido, dormindo! Galopam os cascos do céu nos telhados. Uma chaminé soluça... Ventos da noite, tenebrosos ventos!

É muito cedo
Grave imobilidade do silêncio. Altera-a o cacarejo de um galo. Também a passada de um homem de trabalho. Mas o silêncio continua. De repente, uma mão distraída no meu peito sentiu o latejo do meu coração. Não deixa de ser surpreendente. E de novo, oh, os dias de outrora!, as minhas recordações, as minhas dores, as minhas intenções caminham agachadas para se crucificarem nos caminhos do espaço e do tempo. Assim, pode transita-se com facilidade.

A leprosa
Vi chegar a leprosa. Ficou estendida junto da mata de azáleas que sorri no abandono do hospital. Quando chegar a noite, a leprosa partirá. A leprosa partirá, porque o hospital não a recebe. Partirá quando o dia for mergulhando suavemente no entardecer, mas até o dia prolongará os seus clarões amarelos para não partir juntamente com a leprosa. Chora, junto da mata de azáleas. As irmãs louras e vestidas de azul abandonaram-na: não curarão as suas tristes chagas as irmãs louras vestidas de azul. As crianças, proibidas de se lhe aproximar, fugiram pelos corredores. Esqueceram-na os cães, os cães que lambem as feridas dos esquecidos. Mas a mata rosada de azáleas, sorriso único e terno do hospital, não se moveu do canto do pátio, do canto do pátio onde a leprosa ficou abandonada.

Canção
Minha prima Isabela... Não conheci a minha prima Isabela. Atravessei, anos depois, o pátio ajardinado em que, dizem-me, nos vimos e amámos na infância. E um lugar de sombra: como nos cemitérios, há nele árvores inverniças e endurecidas. Um musgo amarelo rodeia as cinturas de uns vasos de greda parda reclinados no pátio destas recordações... Foi, pois, aí que vi minha prima Isabela. Devo ter-lhe fixado esses olhos das crianças que esperam algo que vai acontecer, está a acontecer ou aconteceu... Prima Isabela, noiva destinada, corre um caudal contínuo, eterno, entre as nossas solidões. Eu, deste lado, corro para vales que não descortino, os meus gritos, as minhas acções que regressam a meu lado em ecos inúteis e perdidos. Tu, do outro lado... Mas rocei-te muitas vezes, Isabela. Porque serás (quem sabe onde!) essa mulher retraída que, quando caminho no crepúsculo, conta da janela, como eu, as primeiras estrelas. Prima Isabela, as primeiras estrelas». In Pablo Neruda, Nasci para Nascer, tradução de Eduardo Saló e Mário Dionísio, Publicações Europa América, Estudos e Documentos, nº 159, 1978, edição nº 4159/2648.

Cortesia de PEAmérica/JDACT