sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O Pêndulo de Foucault Umberto Eco. «Despertou-me um diálogo, entre um rapaz de óculos e uma que infelizmente não os tinha. É o pêndulo de Foucault, disse ele. A primeira experiência na oficina em 1851, depois no Observatoire, e a seguir sob a cúpula do Panthéon»

Cortesia de wikipedia

Keter
«(…) rapariga A Terra girava, mas o lugar a que estava preso o fio era o único ponto fixo do universo. Portanto não era para a Terra que se virava o meu olhar, mas sim lá para cima, onde se celebrava o mistério da imobilidade absoluta. O Pêndulo dizia-me que, movendo-se tudo, o globo, o sistema solar, as nebulosas, os buracos negros e os filhos todos da glande emanação cósmica, dos primeiros éons à matéria mais viscosa, permanecia um único ponto, perno, cavilha, junta ideal, deixando que todo o universo se movesse à sua volta. E eu participava agora nessa experiência suprema, eu que também me movia com tudo e com o todo, mas que podia vê-lo, o Não Móvel, a Rocha, a Garantia, a névoa luminosíssima que não é corpo, que não tem figura forma peso quantidade ou qualidade, e que não vê, não ouve nem cai sob a sensibilidade, não está num lugar, num tempo ou num espaço, não é alma, inteligência, imaginação, opinião, número, ordem, medida, substância, eternidade, não é nem treva nem luz, não é erro e não é verdade.
Despertou-me um diálogo, preciso e apático, entre um rapaz de óculos e uma rapariga que infelizmente não os tinha. É o pêndulo de Foucault, disse ele. A primeira experiência na oficina em 1851, depois no Observatoire, e a seguir sob a cúpula do Panthéon, com um fio de sessenta e sete metros e uma esfera de vinte e oito quilos. Por fim, desde 1855 está aqui, em formato reduzido, pendendo daquele buraco, no meio do cruzeiro. E para que serve, está suspenso e mais nada? Demonstra a rotação da Terra. Como o ponto de suspensão permanece imóvel... Permanece imóvel porquê? Porque um ponto..., como hei-de dizer?..., no seu ponto central, repara bem, todo o ponto que estiver precisamente no meio dos pontos que tu vês, bem, esse ponto, o ponto geométrico, tu não o vês, não tem dimensões, e o que não tiver dimensões não pode ir nem para a direita nem para a esquerda, nem para cima nem para baixo. Portanto não gira, Percebes? Se o ponto não tiver dimensões, nem sequer pode girar à volta de si mesmo. Nem sequer se tem a si próprio… Nem mesmo se a Terra gira?


A Terra gira mas o ponto não gira Se te basta é assim, se não, vai-te lix…, está bem? É lá com ele. Miserável. Tinha por cima da cabeça o único lugar estável do cosmos, o único resgate à maldição do panta rei, e pensava que isso era lá com ele e não consigo mesma. E de facto o casal afastou-se logo a seguir, ele instruído em qualquer manual que lhe tinha ofuscado as possibilidades de se maravilhar, ela inerte, inacessível ao arrepio do infinito, ambos sem terem registado na memória a experiência aterradora daquele seu encontro, primeiro e último, com o Único, o En-sof, o Inexprimível. Como se pode não cair de joelhos perante o altar da certeza?
Eu olhava com reverência e com medo. Naquele instante estava convencido de que Jacopo Belbo tinha razão. Quando me falava do Pêndulo, eu atribuía a sua emoção a um devaneio estético, ao cancro que vinha lentamente a tomar forma, informe, na sua alma, transformando passo a passo, sem que ele se apercebesse, o seu jogo em realidade. Mas se tinha razão quanto ao Pêndulo, talvez também tudo o mais fosse verdade, o Plano, a Conjura Universal, e tinha feito bem ao vir aqui, na véspera do solstício de Verão. Jacopo Belbo não era nenhum louco, simplesmente tinha descoberto a verdade num jogo, através do Jogo. É que a experiência do Sagrado não pode durar muito tempo sem dar cabo da mente. Procurei então distrair o olhar seguindo a curva que dos capitéis das colunas dispostas em semicírculo rompiam ao longo das nervuras da abóbada para o seu fecho, repetindo o mistério da ogiva, que se apoia numa ausência, suprema hipocrisia estática, e faz crer às colunas que impele para cima as nervuras, e a estas, repelidas pelo fecho, que fixa ao chão as colunas, sendo a abóbada afinal um tudo e um nada, efeito e causa ao mesmo tempo. Mas dei-me conta de que descurar o Pêndulo, suspenso da abóbada, e admirar a abóbada, era como que abster-se de beber da nascente para se inebriar na fonte.
O coro de Saint Martin des Champs só existia porque podia existir o Pêndulo, em virtude da lei, e este existia porque existia aquele. Não se pode escapar a um infinito, disse para comigo, refugiando-se noutro infinito, não se escapa à revelação do idêntico iludindo-se de poder encontrar o diferente. Sempre sem conseguir tirar os olhos do fecho da abóbada fui recuando, passo a passo, visto que em poucos minutos, desde que tinha entrado, ficara a saber o percurso de cor e as grandes tartarugas de metal que me ladeavam eram suficientemente imponentes para darem sinal da sua presença pelo canto do olho. Recuei ao longo da nave, para a porta de entrada, e senti-me novamente dominado pelas ameaçadoras aves pré-históricas de tela corroída e fios metálicos, pelas libélulas malignas que uma vontade oculta fizera pender do tecto da nave. Sentia-as como metáforas sapienciais, bem mais significantes e alusivas do que o pretexto didascálico tinha fingido querê-las. Voo de insectos e répteis jurássicos, alegoria das longas migrações que o Pêndulo cá em baixo resumia, arcontes, emanações perversas, eis que caíam sobre mim, com os seus compridos bicos de archeoptérix, os aeroplanos de Breguet, de Bleriot, de Esnault, e o helicóptero de Dufaux». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea (Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT