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«(…) A marcha para um estado superior da orgânica, para a supressão do
antagonismo entre o individual e o colectivo é permanente, simplesmente o
caminho seguido não é direito e fácil, é antes um caminho tortuoso, sempre
ascendente, la route en lacets qui monte de que falava Renan. Que essa
aquisição de um estado superior de unidade só pode fazer-se pela luta e
através de contradições, é lei fundamental da vida; não há que pretender, fora
da realidade, modificá-la, mas sim que interpretá-la, compreendê-la e actuar em
consequência. Cada fase da luta é um passo novo dado no caminho para a unidade
do individual e do colectivo; ela interessa cada vez mais as camadas profundas,
que assim surgem progressivamente para a luz, se arrancam a si mesmas da treva
e conquistam um lugar ao sol. Na época actual, estamos vivendo precisamente uma
fase dessa luta, a mais ampla e mais crua de todos os tempos. O que é que lhe
dá essa amplitude e essa crueza até hoje ainda não atingidas? Para o vermos,
temos que recuar um pouco. Pelo final do século XV, começa a aparecer no mundo
ocidental uma classe cuja intervenção nas relações sociais se torna cada vez
mais frequente e mais vigorosa. Serve-lhe de suporte económico a extensão
crescente das relações comerciais com outras partes do mundo, a aparição de
inventos importantes, como a imprensa, o desenvolvimento das ciências de
observação que, tendo tido em Rogério Bacon o seu precursor, deviam contar nos
séculos XVI e XVII com os nomes brilhantes de Leonardo da Vinci, Copérnico,
Kepler e Galileu.
Durante estes séculos e os seguintes, o peso dessa classe nova não
cessou de aumentar e a luta contra a então classe detentora do poder foi
crescendo em intensidade. Essa luta feriu-se em primeiro lugar contra a Igreja
que, omnipotente durante toda a Idade Média, estava no entanto a braços com uma
grave crise interior e via escaparem-lhe lentamente das mãos as alavancas mercê
das quais até aí desfrutara os benefícios de uma hegemonia material e
espiritual. Luta cruenta foi essa, a de um organismo corrompido que queria
continuar a sobreviver-se, luta a que não faltaram, ao lado de guerras
sangrentas, os episódios mais dramáticos, como o suplício de Giordano Bruno e o
processo monstruoso movido a Galileu. Alcançada porém a vitória da concepção
laica do Estado e dissipada em Westfália a esperança de continuação da
soberania papal, pelo divórcio do Sacerdócio e do Império, pareceria que a nova
classe deveria definitivamente ascender à direcção da sociedade, impondo uma
ordem nova. Tal não se deu porém. O conflito religioso, por maior acuidade que
tivesse revestido, não interessava os alicerces do edifício; esses eram
trabalhados por outras correntes e a luta ia continuar noutro plano, o
político-económico.
Vemos assim aparecer, na segunda metade do século XVII, várias
concepções quanto à natureza e legitimidade do Estado, concepções que oscilavam
entre dois pólos extremos: a do Estado justificado na medida em que assegura e
promove a defesa da liberdade individual e propicia as condições de uma
existência racional, única verdadeiramente humana, Espinosa; a do Estado
consubstanciado com uma pessoa sagrada, cuja actuação tem um só controlo, o da
sua própria consciência, inspirada directamente por Deus, único a quem o soberano
tem que dar contas, Bossuet. Triunfou momentaneamente a tese de Bossuet, na
pessoa de Luís XIV; a de Espinosa deveria esperar pelo século XVIII para que
lhe fosse dada uma realização parcial na grande transformação que se
avizinhava. Por várias razões, que seria longo enumerar aqui, foi a França o
ponto nevrálgico das contradições e conflitos dessa época; lá se concentrou a
actividade dos grandes individualistas revolucionários, obreiros espirituais da
revolução que havia de abrir uma era nova na História.
A nova classe, que vimos começar a manifestar-se alguns séculos antes,
inscreveu na sua bandeira as reivindicações fundamentais formuladas por esses
homens, e assim tornou possível um novo acordo, numa base ampla, entre o
individual e o colectivo. Quando esses homens reclamavam o reconhecimento dos
direitos do indivíduo, não faziam mais que pretender subtrair a colectividade
ao poderio de uma classe restrita e, portanto, reforçando a personalidade
individual, dar, por isso mesmo, uma força nova ao agregado. O grande erro dos
individualistas de hoje é o conservarem-se agarrados à letra das fórmulas, sem
notarem que os termos têm agora um sentido novo que lhe é emprestado pela diferença
fundamental das circunstâncias. Então, por não haver liberdade reconhecida
expressamente, os interesses gerais exigiam a luta por esse reconhecimento;
hoje, em que dela se usou e abusou criminosamente, os mesmos interesses gerais
exigem uma limitação, não do uso mas do abuso. Desenvolvimento e reforçamento
da personalidade, sim, tarefa essencial, mas que eles sejam permitidos e
propiciados a todos. Por que razão o estado social saído da revolução francesa
não garantiu até hoje essa identificação da individualidade com a
colectividade?
A burguesia, após a sua ascensão ao poder, não resistiu ao
anquilosamento que vimos atrás ser característica essencial das classes
dirigentes. Depressa cessou a harmonia dos seus interesses com os interesses
gerais. Os seus fundamentos económicos, livre concorrência e propriedade
privada, cedo se tornaram, pela acção implacável da evolução acelerada do
século XIX, em armas terríveis que ela brandiu em seu exclusivo proveito. A
civilização de base capitalista tornou inoperantes os princípios de liberdade individual
e de igualdade, para não falar já no da fraternidade que só por sarcasmo se
pode pretender que esteja incluído hoje entre as ideias dominantes da
governação. Um elemento novo entrou em cena, a máquina, cujo desenvolvimento
permitiu, como diz Ayguesparse no seu luminoso estudo sobre Maquinismo e
Cultura, uma formidável síntese entre uma classe -a burguesia, e uma
doutrina económica, o capitalismo. E essa síntese, que teria sido fecunda
se a máquina tivesse sido posta, como devia, ao serviço do homem, tornou-se,
pelo contrário, monstruosa, porque produziu, não a emancipação, mas
escravização económica do trabalhador. O homem escravo da coisa -eis a grande
condenação, no campo moral, do regime social contemporâneo». In Bento de Jesus Caraça, 1933, União
Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939.
Cortesia de Seara Nova/JDACT