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quinta-feira, 2 de março de 2017

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «A confiança no irmão Henrique era total, tanto quanto o afeiçoamento que lhe devotava sobrelevava os defeitos. Sentiu-se manietado por uma força de atracção que o prendeu a este irmão»

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«(…) Sentindo-se encorajado por estes pensamentos, o rei enrijou a silhueta, deitou para trás aquilo que não conseguia desvendar e numa voz forte chamou pelo reposteiro: Gonçalo! Gonçalo! O chamamento, dito em tons que ecoaram pelo Paço, chegou ainda audível aos ouvidos do infante Fernando, que nesse momento se preparava para abandonar o terreiro da casa apalaçada. Pressentindo pela tonalidade da voz o anúncio de uma tempestade, o infante apurou o ouvido, pensando poder distinguir as palavras que Duarte trocou com o servidor, mas o que escutou não lhe permitiu decifrar o recado que o pensamento do irmão privilegiou: ide já ligeiro ao encontro do infante Henrique. Dizei-lhe da urgência do seu conselho e que o espero sem demora em Lisboa, para onde seguirei. Desorientado pela complexidade de um assunto que lhe desordenava as ideias, o rei esqueceu-se de que a precedência entre os irmãos começava em Pedro e não em Henrique, ligação que, por ser irreflectida, trará consequências.
Honestamente submerso pela governação, o rei Duarte I não deu a princípio pelas manobras. Mas algumas manifestações alertaram-lhe o pensamento, sentindo grande necessidade de decifrar o que se passava. Não era de especulações, mas, roído pelo pressentimento, mandou alguém remexer nos grupos que fugiam ao seu controlo. Que não! Tudo estava calmo no reino de sua majestade, não havia motivos para alarme. Descansasse, nada temesse, porque os nobres respeitavam-no, a Igreja temia-o e o povo amava-o. Duarte descansou, como o aconselharam. Eis senão, sem aviso, entra-lhe o irmão mais novo pelo sossego adentro. Desarruma-lhe a casa que tem dentro da cabeça, provoca-lhe sentimentos violentos, assegura-lhe que as suspeitas vão além disso. Apreensivo, receia o pior. Não sabe onde o enredo o leva, se será ele o vencido ou, pelo contrário, se vencerá. Desconhece a origem, mas fica persuadido de que, se existe uma maquinação, só pode ser gerada por um grande nobre com influência na corte e no reino.
Duarte I infernizava-se por não estar na posse de todos os dados e, apesar de ser conhecedor de um circuito de intenções, continua sem saber quem atirou o irmão mais novo para a frente. Incomodado, estica até ao limite o cérebro, à espera que uma lufada de siso lhe fertilize o pensamento. Enquanto cruzava mais uma vez o compartimento de ponta a ponta, veio-lhe ao pensamento a imagem do infante Henrique, uma representação visual precipitada, um condicionamento virtual que o juízo lhe enviou para resolução. Subjugado pela áurea do homem cuja forte energia psicológica e física o impressionava, cedeu sob a imagem que lhe oferecia as devidas soluções e nenhumas dúvidas. Mais uns passos para lá, outros tantos para cá, conta Duarte. No momento em que me ocorreu chamar por Henrique, fui levado por uma força desconhecida, atraído por uma imagem obsessiva, pois vi nele o homem sério, honesto, fiel à Coroa, sem pôr em dúvida as suas virtudes nem sobrevalorizar os defeitos.
A confiança no irmão Henrique era total, tanto quanto o afeiçoamento que lhe devotava sobrelevava os defeitos. Sentiu-se manietado por uma força de atracção que o prendeu a este irmão, e de nada lhe valia exercitar o juízo à procura de outras soluções, porque não conseguia libertar-se do íman que o atraía. Por que pensamento, por que razão vai Duarte encontrar-se com Henrique, se Pedro é mais velho do que ele, mais versado na política, mais cosmopolita, mais reflectido, o seu irmão preferido, como gostava de dizer. Porquê, por que encargo este rei inteligente foi atrás de um impulso, quando uma das suas mais pronunciadas características era a ausência de arrebatamentos? Há coisas para as quais não vale a pena procurar explicação». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de Cdo Autor/JDACT

quinta-feira, 28 de abril de 2016

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… deixou mais uma frase por decifrar: “se é a vós que sirvo, não deixeis que me consagre a outros, reconsiderai também como me aconselhais”. Ao retirar-se, o infante…»

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O infante Fernando não quer ficar
«(…) Não obstante os monólogos íntimos que o infante e o rei travavam, lampejos da mente sobre a fala, eles traduziam-se acima de tudo na necessidade de evitar agredirem-se, sempre à procura de uma mesura que pudesse suavizar o palavreado. Que dizeis, Fernando?, insurgiu-se o rei. Que injustiça pretendeis acometer-me? Sabeis tão bem como eu que depois de nosso pai morrer nunca deixei de vos agasalhar, acrescentar e manter. Dignifiquei a vossa Casa, fiz crescer os vossos bens, protegi-vos. Que tínheis vós antes de nosso pai falecer? Eu digo-vos. Tínheis menos do que tens agora. Porque não lhe dissestes a ele o que me estais hoje a dizer?
Sem se interrompe em jeito de reprimenda, Duarte continuou: a vós dei-vos o Mestrado de Avis, que de rendas é superior ao de Sant'Iago que nosso irmão João detém, e dessa inferioridade ele se não queixou como agora vós fazeis. Contrariamente ao que vindes defendendo, não quiseste aceitar o barrete cardinalício que vos oferecia Gomes Ferreira por recomendação de Sua Eminência. Que maior dignidade podias alcançar se aceitasses o cargo e que rendas não conseguirias? Não seria mais apropriado para vós, um homem tão dedicado a Deus, serdes cardeal? No capítulo dos casamentos, nunca vos vi interessado em folgar com donzela, assim como também desconheço o vosso interesse pelo matrimónio. Se é certo que convinha a Portugal o casamento de um dos seus mais ilustres filhos, também é verdadeiro que mesmo sem estar de acordo tenho respeitado o vosso voto de castidade. É só por isso que não tendes hoje dama da melhor qualidade para vos aquecer a cama e gerar os filhos que gostarias de ter. Sendo assim, proponho-vos o seguinte: prontificas-te a renegar o voto de castidade? Responde, irmão, toma esse compromisso comigo, sela nem que seja com um abraço a proposta que vos faço e hoje mesmo emissários percorrerão o mundo para vos encontrar dama de virtude e realeza sem par. Fala, responde ao que te proponho!
O infante gaguejou, entupido pela força que Duarte deu ao desafio. Queria dizer que sim, que não, que ia pensar, mas ficou mudo, de cabeça baixa, sem responder ao repto que o irmão lhe fez. Porque forçais a vossa ignorância?, prosseguiu Duarte. É só para me reptardes? Olha, irmão, não estás casado, mas não estás atrasado. Isso vos garanto. Tinha eu mais três anos do que agora vós tendes quando me casei com a nossa amada rainha, os mesmos anos que Pedro havia quando se casou com a senhora dona Isabel de Urgel. Não há por isso nenhum desacerto, não pode haver, a não ser a manifesta vontade em manterdes o sacramento que juraste. Um reino não se constrói num só dia. Por muito que nosso pai o tenha erguido, muito há para fazer. Esperai algum tempo e vereis que aparecerão assuntos importantes para um nobre da vossa estirpe se envolver e deles retirar o engrandecimento que hoje reclamais. Ide, reconsiderai, esperai que vos proponha assunto vantajoso. Até lá, aguardai por uma resposta que não deixarei de vos dar.
Aceitando o convite, quase a vencer a ombreira da porta, Fernando, virando-se para trás, deixou mais uma frase por decifrar: se é a vós que sirvo, não deixeis que me consagre a outros, reconsiderai também como me aconselhais. Ao retirar-se, o infante deixou na sala um vazio difícil de preencher. Duarte trancou-se silencioso, olhos fechados para melhor intuir o que acabara de suceder. Aos poucos, recuperando cada momento da conversa ainda fresca, tentou estabelecer ligações entre os argumentos do irmão e o persistente clima de conspiração que pressentia. Duvidava. Duvidava mesmo que fossem realmente as razões expostas pelo irmão o verdadeiro motivo da presença dele ali naquele dia. Todavia, ficava com que se entreter. Levantou-se, atravessou a sala em passadas que retomavam a partida, avançando para recuar demorando uma eternidade para chegar de uma parede a outra. Rebuscava naquele incessante caminhar, antes de mais, um significado que o levasse ao cerne da questão: tudo o que o irmão lhe disse correspondia a uma iniciativa concertada? Assim sendo, quem eram os concertantes? Não lhe ocorria nenhuma relação e por isso se martirizava.
Uma sombra, a opacidade dos dias infelizes assestou sobre o rosto de Duarte. A angústia de estar perto da verdade sem no entanto a alcançar devorava-lhe a mente. Para ele, o palavreado do irmão tanto podia significar uma proposta, uma ameaça, ou mesmo, quem sabe, uma traição. Mas se não fosse assim? Se o discurso de Fernando significasse apenas um desabafo? Então só tinha de relegar tudo o que foi dito para os assuntos sem importância. Se é a vós que sirvo, não deixeis que me consagre a outros, reconsiderai por isso também como me aconselhais, repetia Duarte para si, sem saber como interpretar a frase. Sentiu medo. Não por ele, pensava na família, e só a simples ideia de a imaginar desunida o comovia. Ele, o guardião irrepreensível da concórdia familiar, não podia deixar quebrarem-se os laços fraternais por causa de interesses pessoais, lembrando-se recorrentemente do juramento que fez à saudosa mãe e que naquela hora fazia mais sentido do que nunca». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de Cdo Autor/JDACT

sexta-feira, 8 de abril de 2016

O Infante Fernando de Portugal. Senhor de Serpa (1218-1246). Armando S. Pereira. «Um atrito entre o infante Fernando e mestre Vicente, bispo da Guarda, levou-o a provocar uma série de tumultos na diocese egitaniense em 1236 ou 1237»

Cortesia de wikipedia

História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante
«(…) O seu comportamento aparece, neste contexto, como o reflexo das profundas mutações sociais e políticas da primeira metade do século XIII, que atingem o seu ponto crítico no reinado de Sancho II, levando, inclusivé, ao seu afastamento do governo, porque leyxou de fazer justiça, e a uma guerra civil que divide os grandes do país (uma interpretação da crise do reinado de Sancho II, que ultrapassa o domínio redutor do factor político para assentar, sobretudo, em aspectos de ordem económica e social). Sobre a intervenção do infante neste processo, os informes que nos chegaram provêm exclusivamente do olhar da Igreja, particularmente lesada pelas violências que contra ela foram exercidas: são as numerosas bulas que Ugolino de Óstia, o papa Gregório IX, emitiu, em curto espaço de tempo, sobre o assunto, umas dirigidas aos prelados portugueses e peninsulares, outras ao próprio infante, através das quais podemos tentar delinear os seus projectos e ambições, os seus apoios e as consequências da sua actuação. Apesar de ser um único ponto de vista apenas, o clerical.
Um atrito entre o infante Fernando e mestre Vicente, bispo da Guarda, levou-o a provocar uma série de tumultos na diocese egitaniense em 1236 ou 1237. É deste último ano, de 29 de Abril, a bula Laerimabilem siquidem Venerabilis fralris, que Gregório IX envia ao arcebispo de Toledo e ao bispo de Leão, incumbindo-os de excomungarem o infante e os seus cúmplices e de lançarem o interdito eclesiástico em todos os lugares onde eles estacionarem, devido às atrocidades que, com audacia delinquendi, cometeram contra as igrejas e prelados de Portugal, dissipando os bens que o bispo e família possuíam em Lisboa e na Guarda e matando vários clérigos em Santarém, entre os quais se contavam alguns que eram scriptores Régis. Os atentados perpetrados pelo infante Fernando contra a igreja e os seus membros foram bem mais graves: além das sanguinolentas perseguições movidas contra a parentela de João Rolis, deão da Sé de Lisboa, teria ainda roubado aos seus familiares, entre outros bens, grandes porções de trigo, cevada e vinho e executado destruições várias, actos em que se teriam envolvido também, grande sacrilégio, alguns muçulmanos a soldo do infante. Não se fica por aqui. Acometido de audacia et potentiam e com manus uiolentas, é responsável por muitos outros crimes contra a clerezia de diversas igrejas e mosteiros. Tudo isto consta da bula Ad instantiam, que em 20 de Dezembro de 1239 Gregório IX envia ao bispo de Osma a dar-lhe conhecimento das pesadas penitências impostas ao infante por tão graves violências cometidas. Mas já uma outra bula do ano anterior, a Tjrannidem quam, dirigida em 6 de Maio ao arcebispo de Toledo a acusar de tirania o rei de Portugal, revelava as depradações que o seu irmão Fernando exerceu contra João Rolis, roubando bens e destruindo igrejas, nas quais se teria servido também dos valiosos préstimos dos muçulmanos para destruir e profanar o interior de uma igreja. Portanto, as lamentáveis façanhas aqui arroladas devem ter sido cometidas no decurso de 1237 e princípios de 1238, e estão directamente relacionadas com a problemática questão das eleições para o bispado de Lisboa. Uma Sé vacante, uni cabido comprometido e dividido, um rei indeciso. E uma situação que parece insolúvel e promete arrastar-se. Assim, a instâncias do papa, é nomeado bispo o deão da Sé, João Rolis, antigo capelão pontifício, ao que se opõem violentamente alguns cónegos, o chanceler e o rei, em conflito com ele desde 1223, no intuito de o substituírem por Estevão Gomes. O que é curioso é que ainda há bem pouco tempo também este tinha sido alvo da ira régia. Acontecimentos que. no seu conjunto, levam o rei a ser excomungado e o Reino interditado, durante alguns meses do ano de 1238.
Foi nesta complexa trama de relações que Fernando se envolveu activamente. Tentemos perceber porquê. Agressividade gratuita, aproveitando a fraqueza de um poder central incapaz de sustentar a ordem pública, simples actos de banditismo com o único fito de saquear bens ou perseguição política relacionada com o problema da vacância da Sé lisboeta, tendo em conta a localização precisa dos conflitos? Talvez a situação de caos e permissividade em que se encontrava o Reino possibilitasse a confluência de todas estas motivações que, actuando em conjunto, deram origem a um quadro dramático, composto de violências de toda a espécie. E o infante não era o único. Parece que também em 1237 o seu tio bastardo, Rodrigo Sanches, teria cometido violências semelhantes na diocese do Porto. Disso se queixou ao rei o respectivo bispo, Pedro Salvadores». In Armando Sousa Pereira, O Infante Fernando de Portugal, Senhor de Serpa (1218-1246), História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante, Estudo apresentado em Setembro de 1997, Seminário “A nobreza medieval portuguesa: parentesco, identidade e poder”, dirigido por Bernardo Vasconcelos Sousa, revista Lusitânia Sacha, 2ª série, 10, 1998.

Cortesia de LSacha/JDACT

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «Escanhoado e penteado pelo barbeiro, personagem que não tinha dignidade para comungar com ele na sua capela, vestiu-se com a ajuda do camareiro, este, sim, estava autorizado a fazer-lhe companhia nas rezas que se prolongariam por toda a manhã»

jdact e wikipedia

O infante Fernando não quer ficar
«(…) Já disposto a dar por finda a entrevista, esquecendo a disponibilidade que disse dispensar ao irmão, Duarte I procurou fixá-lo nos olhos, de maneira a medir o ascendente que sempre teve sobre ele. O que viu foi outra coisa. A energia que Fernando havia demonstrado momentos antes, tanto nos gestos como nas palavras, resumia-se no fim de contas à lição pouco estudada e às réplicas ensaiadas por algum mestre na arte de representar. Chamado à ordem pelo cintilar reprovador dos olhos de Duarte, o infante vacilou, sentiu-se descomposto, pois o suor que lhe molhava a pele prometia passar ao bonito traje que nesse dia vestiu. Longe de ser vaidoso ou ostensivo, Fernando entendeu mesmo assim apresentar-se ao rei vestido com as suas melhores roupas, dado que o assunto merecia ser explicado com todas as armas e cuidados. Nesse dia levantou-se cedo, cumpriu as primeiras rezas sem sair dos aposentos e daí a pouco deslocou-se para se enfiar em capela própria, prosseguindo o seu diálogo com a divindade. Nos pequenos intervalos que as obrigações sagradas lhe impunham, os criados expuseram-lhe os passos que tinha de dar naquele dia e os compromissos aos quais não devia faltar, particularmente o encontro que tinha agendado com o rei. Não precisariam de o fazer. O infante não pensara noutra coisa desde que abrira os olhos, ainda o sol não vencera o horizonte.
Escanhoado e penteado pelo barbeiro, personagem que não tinha dignidade para comungar com ele na sua capela, vestiu-se com a ajuda do camareiro, este, sim, estava autorizado a fazer-lhe companhia nas rezas que se prolongariam por toda a manhã e por todos os santos. Quando as sombras começaram a encurtar, bem a pino sobre as cabeças, decidiu vestir-se com tempo, ajudado pelo criado mais íntimo. Após receber as ordens, o moço de câmara apareceu-lhe com urna alcândora, espécie de camisa de gola alta e umas calças de lã muito justas, que depois de vestidas lhe desenharam bem os contornos das coxas. Esta peça vestia-se em duas tentativas, um elemento de cada vez, porque embora fossem semelhantes aos collants de hoje, enfiavam-se individualmente. Calçou depois umas pontilhas excessivamente pontiagudas, de pele, esforçadamente enfiadas pelo sapateiro, outro que não metia os pés perto do seu altar, sentindo algum desconforto por os sapatos lhe apertarem os dedos. Mesmo assim decidiu mantê-los. Concordavam com o resto da farpela e valia a pena algum sacrifício em prol da aparência.
Com cuidado, vestiu um saio que o camareiro seleccionou, de veludo verde-escuro, bem curto, para não fugir à moda, um exagero para os que não estavam acostumados às novidades. O cinto que pôs ostentava uma fivela de ouro cravejada de brilhantes, bem apertado na zona da cintura, o que insinuava mais a elegância das suas poucas carnes. Sentir-se-ia melhor depois de colocar um sombreiro do mesmo tecido e da mesma cor do saio. O chapéu, ligeiramente enfiado na cabeça, estreitava no extremo superior do corpo cilíndrico, alargando depois na outra extremidade para deixar entrar confortavelmente a cabeça e dar à copa o alinhamento que esta precisava. No meio, incorporou-lhe um diadema de prata, engastado de esmeraldas, quase um exibicionismo nunca visto no infante. Mas este dia era diferente. Fazia questão de alardear alguma exuberância na pose, um espectáculo que fazia questão de mostrar para suplantar o irmão, pelo menos no vestir, pois sabia como Duarte era modesto nas roupas que usava.
Não deixou também de ostentar, nem podia, as insígnias do Mestrado de Avis, pois era impensável dispensá-las por mais que o cargo se revelasse pouco compensador. Assim vestido, pelo menos nesse momento sentiu-se tão importante como qualquer um, sossegando-lhe o nervoso miudinho desde que o dia abriu as janelas. Aquele dia constituía-se para o infante Fernando como o mais importante da sua vida. Considerava-o assim por não ter tido outros de grande relevância, mas sobretudo porque esta data era como que um marco na sua futura autonomia. Sentia-se corajoso, capaz de enfrentar o homem mais poderoso de Portugal, até que o irmão lhe permitisse substituir uma vida passada de desânimos por outra virtuosa. Eis porque me visto no momento presente das melhores roupas que tenho e uso as mais valiosas jóias que possuo, uma ostentação quase agressiva comparada com a simplicidade de Duarte. No entanto não me deixo enganar, automotivou-se o infante, o que não pode ser feito de um dia para o outro no carácter, na maneira de ser, permite-nos consegui-lo de forma expedita através do que envergamos. A nossa segunda pele produz falsidades tão imediatas, tão rápidas e eficazes, tanto quanto uma vida inteira não consegue». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de Cdo Autor/JDACT

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «Quem partiu com nossa irmã desde Cascais e a acompanhou até à Flandres para se casar com o senhor duque da Borgonha? O que sou eu então? O avalista das vossas condutas?»

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O infante Fernando não quer ficar
«(…) É da minha fraternal companhia que vos quereis afastar, irmão?, questionou o rei. Que tendes vós contra mim? Não, irmão, não é de vós que me quero apartar, declarou Fernando, mas do peso das vossas realizações. Como posso eu ter ambições se os meus mais próximos sempre carregam sobre mim um poder que eu não sou capaz de devolver? Que posso fazer diante da vossa inteligência, das vossas iniciativas, dos vossos poderosos aliados? Que respeito me atribuem, se sou intercessor das vossas desavenças, testemunha e acompanhante das vossas uniões matrimoniais, presenteador do nascimento dos vossos filhos, mestre-sala das reuniões cortesãs? Duarte I sentiu um abalo imenso. Considerava as palavras de Fernando injustas, via nelas um despropósito num contexto provocatório, mais uma instrumentalização de terceiros do que palavras sentidas e próprias. Pela sua parte, o infante Fernando tentava descortinar no rei um momento de fraqueza. Aos poucos, recomposto, mais pelo abatimento de Duarte I do que pela propriedade das suas palavras, o infante esforçou-se por dar veracidade a um discurso pensado por outros que não ele: aflijo-me. Até hoje não consegui impôr-me com glória no campo de batalha e, não se me deparando essa oportunidade, não tenho nenhum feito de armas que enobreça a minha Casa. É disto que vos falo. Mais do que os acrescentamentos e as mercês que me são devidos, é a honra acima de tudo que procuro, tal como vós e nossos irmãos a têm bem nutrida. A glória de vencerdes os inimigos da religião de Cristo em Ceuta trouxe-vos o merecido galardão de cavaleiro, uma honra ganha com suor e sangue, o que vos dá ainda maior dignidade para governar. Ninguém mais do que vós merecia essa homenagem, estou certo. Também não serei eu que nego o direito que Pedro e Henrique tiveram em constituir as suas Casas com cabedais suficientes para suportar as despesas e manter uma corte disciplinada e fiel. Fez bem nosso pai em conceder-lhes os ducados de Coimbra e Viseu e todas as terras ao seu redor, pois um príncipe não pode viver de esmolas alheias, como eu vivo, lá porque fui esquecido e vós pouco vos lembrastes de mim.
Imparável, Fernando continuou com as razões da sua desdita, lamentações que lhe traziam grande infelicidade e emocionavam o rei, também ele um mal-aventurado. Atento ao discurso, Duarte I, se não estava certo do despeito que animava o irmão, passou a ter a certeza. Não lhe interrompeu os queixumes, deixou-o expor-se, já convencido de que pretendia atingir um determinado fim, o qual, até ali, não tivera coragem para revelar: … não haverá em toda a cristandade donzela da mesma condição que queira comigo partilhar a vida? Há certamente. Sabeis disso muito bem, porque sois vós quem decide o meu contrato matrimonial quando os arranjos políticos assim o aconselharem. Até nisto sou reprimido. Impedido de escolher quem comigo partilhe a cama, os filhos, a casa, os afectos, sou, mal desejeis, uma carta que meu irmão senhor rei tem para jogar, sobrepondo os altos interesses do reino aos meus sentimentos. A conversa ia longa e enojosa, como diria Duarte I se lhe ouvíssemos os pensamentos. Para palavras rijas, rijas palavras, terá pensado o rei, sem contudo tomar a iniciativa porque Fernando parecia não se cansar: … quem intercedeu para que os desagravos entre Pedro e nosso amado pai se desvanecessem? Quem serviu de aval do vosso casamento com a infanta dona Leonor de Aragão e o de Pedro com dona Isabel de Urgel? Quem partiu com nossa irmã desde Cascais e a acompanhou até à Flandres para se casar com o senhor duque da Borgonha? O que sou eu então? O avalista das vossas condutas? A representação visível das boas intenções da corte?» In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. do Autor/JDACT

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «O rei lamentava e cada vez mais se convencia de que aquele irmão mal alinhado se tinha transformado num ser desconhecido para si. A custo, refez a argumentação na ilusão de não alimentar o desânimo do irmão…»

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Um irmão mal sintonizado
«(…) O rei esforçava-se, a todos procurava agradar, dividia o que podia, protegia, mas tudo isso não ia tão longe quanto os nobres gostariam que fosse. Ingénuo, tudo indica, esquecia-se que eles eram insaciáveis, ávidos de bens e sibilinos nas intrigas que fomentavam.
Tudo tenho feito para no essencial satisfazer os fidalgos do meu sangue, rememorava o rei, todavia, não vou, não quero, é contra os princípios da humanidade deixar que uns poucos fiquem mais ricos para que os outros, mais humildes, empobreçam. Sigo os exemplos que me deram, e é por isso que não esqueço a recomendação que a minha muito saudosa e amada mãe me fez, em vésperas da sua morte, rogando-me que protegesse e defendesse os povos. No entanto, fico apreensivo. O que será da coroa sem os seus melhores fidalgos, aqueles que em momentos difíceis interferem na vida do reino, lhe dão prestígio, asseguram a independência, prestam ajuda, aconselham o rei quando deles precisa.
Enquanto se mantinha submerso nos pensamentos que lhe ocorriam ligeiros, distantes mas límpidos, o passado em retrospectiva, Duarte retirava das suas lembranças argumentos para melhor fazer face à constrangedora situação que o irmão lhe criara. Lembrou-se, de entre o turbilhão de acontecimentos que o marcaram pela vida fora, da imagem do irmão Pedro diante do pai, solicitando-lhe dispensa para procurar no estrangeiro o reconhecimento que em Portugal lhe parecia vedado. Agora, volvidos mais de dez anos, é o irmão mais novo que o repta no mesmo sentido. De uma coisa o rei não duvidava. Sendo embora uma situação semelhante à de Pedro, a iniciativa de Fernando não teria acolhimento. Estava fora de questão autorizar-lhe a partida, não iria ceder ao pedido, simplesmente porque não era João I, nem Fernando era Pedro. Este, quando abalou, tinha razão, era um nobre com total autonomia e sobretudo definição nos propósitos, ao contrário do irmão mais novo, sem causa justificada, muito dependente da coroa e sem esclarecidos argumentos.

O infante Fernando não quer ficar
O que fazer agora? Duarte I sabia que não aceitaria o pedido do irmão, mas não sabia como dizer-lhe, até que voltou aos conselhos que lhe deu Pedro: Adia, adia até teres soluções. Reconfortado pelo alvitre, na posse de uma nova forca, o rei encarou o irmão com determinação: Dizeis-me então que tendes a ambição de vos pordes ao serviço do rei de Inglaterra. Sendo assim, pergunto-vos: o serviço que quereis prestar ao nosso primo Henrique, que lá governa, é mais importante do que aquele que deveis a vosso irmão? Já agora, esclarece-me esta dúvida. tendes vós a exacta medida da importância da vossa presença para a respeitabilidade da coroa? Posto a pensar, o infante Fernando fez apelo ao mais profundo do seu ser para manter um discurso crítico, acusador, sem todavia se exceder nem nas recriminações nem na tonalidade da voz. Sei que sou alguma coisa, irmão, recomeçou o infante Fernando, mas quero ser mais. Quero ter mais reconhecimento, mais poder, ombrear convosco naquilo em que me reconheceis inferior.
Agora mesmo chegou o tempo de esclarecer dúvidas: serei um grande deste reino? Não estou assim tão certo dessa condição. Tudo o que me foi concedido parece ter a importância das sobras, o que restou do que foi dado aos outros. Se é certo que me atribuíste recentemente o Mestrado de Avis, também é verdade que para ser honesto terei de o dividir com a Igreja, por serem bens que também lhe pertence. Eu disto não reclamo, acho justo, pois sabeis bem que por nada cobiçaria a parte da instituição sagrada. Mas isto é quase nada. Quero ser mais, tão grande que possa estar no mesmo patamar dos meus ilustríssimos irmãos, a quem admiro, estimo e que vejo prosperar com tudo aquilo que lhes foi acrescentado. O rei lamentava e cada vez mais se convencia de que aquele irmão mal alinhado se tinha transformado num ser desconhecido para si. A custo, refez a argumentação na ilusão de não alimentar o desânimo do irmão e mais do que tudo evitar manchar o seu relacionamento com ele». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. do Autor/JDACT

domingo, 9 de agosto de 2015

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… tenho trinta e quatro anos. Os meus bens não são nem metade daqueles que os infantes nossos irmãos têm. Hoje vejo-me em dificuldade para pagar aos meus o que de justiça e direito lhes devo, situação de aperto desprestigiante…»

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Um irmão mal sintonizado
«(…) No entanto, nesse dia não estava para se deixar manobrar, já que decidira não sair dali sem uma resposta: Senhor, é preferível abalar para onde a aventura me chama do que viver no reino com a indignidade de não fazer nada por minha honra e acrescentamento. Vim dizer-vos, entre outras coisas, que nunca mais quero ser tratado como até aqui, menosprezado nas minhas qualidades e na minha dignidade. Desta vez o monarca Duarte I não o interrompeu. Sou o mais pobre de vós, prosseguiu o infante Fernando no mesmo tom. Sou também aquele que menos glória juntou à sua honra e menos respeito ganhou da nação. O que sou eu então? E ele a dar-lhe, aborrecia-se Duarte I. Pobre rei. Afundando-se no cadeirão real, triste, incapaz de ser desagradável com o irmão, pensava nas cartas que o infante Pedro lhe dirigiu de Bruges, lembrando-se de ter lido num dos manuscritos alguns conselhos que ilustravam bem o que ultimamente se passava: … preparai-vos. De entre os pedidos que vos chegarão, alguns terão uma direcção precisa e dirigida à arte militar, confundindo lucros próprios com interesses colectivos. São tentativas para usar a coroa como fachada, oficializar acções pare as quais não tendes vontade nem trazem nada de bom ao reino, mas que vos implica mais do que aos que as cometem. Não valia de nada ao rei divagar. O problema estava ali mesmo à sua frente, teria de se confrontar com ele e nem sabia o que estava para vir.
Devolvido dos seus pensamentos, reparou na figura tolhida de Fernando e não gostou do que viu. A sua análise sugere-lhe que o deve desafiar em vez de comiserar mostrar-lhe que o seu destino não lhe é indiferente, mas para isso precisa que as falas tenham a clareza que a relação entre irmãos deve ter. Convencido de que Fernando se pode abrir com ele, incita-o a revelar os recados que traz escondidos: irmão, quem melhor do que eu sabe quem vós sois. Haverá alguém no reino que vos conheça e ame mais do que eu? Concordai comigo, peço-vos, deixai antes que eu perceba o que vos traz até mim, abri o vosso coração magoado, clarificai o pensamento encoberto. Assim instado, Fernando foi direito ao assunto: … tenho trinta e quatro anos. Os meus bens não são nem metade daqueles que os infantes nossos irmãos têm. Hoje vejo-me em dificuldade para pagar aos meus o que de justiça e direito lhes devo, situação de aperto desprestigiante, indigna num nobre da minha qualidade. Mereço mais, ambiciono mais, mas não se trata apenas de bens. É grande a minha vontade em servir no reino de Inglaterra, onde o reconhecimento da família de nossa mãe me dará a importância que aqui não tenho e os cabedais que cá não possuo.
Para o rei, o dia não era diferente dos outros, e a circunstância de o irmão o requisitar não lhe alterava os hábitos nem os afazeres. Não estava em Lisboa, onde não podia deixar de mostrar as insígnias reais, mas nem lhe passava pelo pensamento fazer o mesmo no Paço de Almeirim. De cabeça descoberta, pendurou no corpo uma camisa de cetim, ou gibão forrado, preferindo este aos de chumaços, que enformavam mais a sua forte compleição. Um cinto pouco apertado cingia-lhe mal a cintura, para deixar cair direito o gibão até meio das coxas fortes, abrigadas por umas calças de tecido de lã com reforço nas partes pudentes. Perante o irmão, parecia um mesteiral. Contudo, não era por isso que a conversa não continuava nem que o seu interlocutor se ia embora.
Não é aceitável que nobres de tão alto gabarito abandonem a pátria, retomou Duarte I a conversa. Deixam para trás os seus haveres e famílias, à procura de um pouco mais daquilo que aqui têm, esquecem afectos, tradições, a língua materna, desvestem-se das suas responsabilidades para com o país. Que dirão de nós as cortes europeias? Certamente pensarão que Portugal não tem quanto baste para sustento de tão dignas personagens, o que é errado e desprestigiante. Quereis vós engrossar o número dos que me abandonam e desencantam? Preocupado, Duarte I perscrutava razões e estratégias para fazer face a um mal-estar provável. De facto o conjunto de apreensões manifestadas pelo rei tinha razão de ser. Os indícios que pressentia começavam a sugerir intromissões sub-reptícias da nobreza na política da coroa, exigindo do monarca reflexões atentas. Para estes senhores, Portugal prosseguia um período demasiado dilatado de paz, favorável a Duarte I, importante para a vida do reino, mas que os levava à ruína». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. do Autor/JDACT

sexta-feira, 26 de junho de 2015

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «O que sou eu?, pergunta feita de súbito, desgarrada, impertinente. Contrariado, Duarte fixou o irmão, sem ter na voz uma resposta acabada para lhe dar. O que sois vós, como?, pergunta retribuída com sinceridade»

jdact e wikipedia

Um irmão mal sintonizado
«(…) Entre a possibilidade de uma chalaça ou de uma crítica escondida, o infante Fernando sentiu-se desconfortável. Nem era porque o irmão fosse desconcertante ou que tivesse sequer sentido de humor. Não, nada disso! A sensibilidade da missão que o trazia ali é que o tornava inseguro. Por isso, quis responder, mas a resposta não lhe saiu espontânea e não esteve para rebuscar palavras que o atrapalhariam mais. Sem Duarte I ainda saber, o tema da conversa, que Fernando quer rodear de toda a formalidade, vai no sentido de propor a sua saída do reino em busca de glória e do pecúlio que parece não conseguir gerar em Portugal. Sente-se mal aproveitado, quer sair do reino para dar ao seu nome e à sua Casa a importância que em Portugal não obtém. Isto é o que vai dizer ao rei, embora, por enquanto, lhe omita o verdadeiro motivo da sua presença ali. Embaraçado, hirto, num plano inferior relativamente à posição sentada do monarca, o infante Fernando comprime-se. Não era para menos. Ao esconder o que não queria dizer, omitia a verdade, uma forma próxima da mentira, coisa que se pensasse bem não faria, pois, nessa hora ou em qualquer lugar, Deus estaria de olho nele.
Bom observador, o rei apercebe-se incomodado da descomposta figura do infante, despertando nele um esforço maior para decifrar a mensagem para além do que parece. Mau sinal, pensou o rei, desconfiado. Duarte começava a preparar-se para qualquer eventualidade, mas a questão que o irmão lhe pôs, quase uma provocação, apanhou-o desprevenido. O que sou eu?, pergunta feita de súbito, desgarrada, impertinente. Contrariado, Duarte fixou o irmão, sem ter na voz uma resposta acabada para lhe dar. O que sois vós, como?, pergunta retribuída com sinceridade.
O rei, afastado do que o irmão queria que ele soubesse responder-lhe, entendia que ao devolver-lhe a pergunta invertia o constrangimento que esta lhe causou, além de passar para Fernando a difícil tarefa de se explicar. Senhor, ficai sabendo, que nunca no meu pensamento existirão palavras espúrias que de algum modo vos façam sofrer, volveu Fernando, com uma dureza pouco consentânea com o seu modo sensível. Ao revelar-vos as minhas intenções, estou ciente da vossa compreensão para com o homem que se sente privilegiado por ser vosso irmão, mas, diminuído pelas circunstâncias, também percebe que é o mais infeliz dos príncipes.
- Antes de prosseguirdes, sabei já que a vossa conversa me contraria avantajadamente. Se persistis em substituir no vosso discurso as palavras por imagens, sabei que o meu coração se comprime a cada verbo que pronunciais. Sem ter por enquanto uma solução à vista, Duarte, numa manobra que pretendia fazer precipitar as palavras do irmão, disse-lhe: prossegui então, porque para incompreensões já estou armado. Acusando o remoque, Fernando esperou algum tempo para voltar a dirigir o olhar ao irmão, procurando com manifesta dificuldade recompor-se do golpe recebido. As precedências tinham muito peso, e Fernando, por maioria de razão, apagava-se sempre que tinha de se confrontar com os irmãos mais velhos. Tinha razões para isso. O seu sentimento de inferioridade revelava-se complexo por não ser capaz de vencer a barreira da menoridade, manifestações que o levaram quase a claudicar perante a última tirada do irmão». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de CAutor/JDACT

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… dizei ao criado do rei que quinta-feira depois da vigília da Santa Cruz de Setembro, mais para a tarde, me avistarei com ele e que lhe agradeço o tempo que se dispõe ceder-me…»

jdact

Um irmão mal sintonizado
«(…) Depois de quase três anos de governação sossegada, o reinado de Duarte I encontrou-se com o seu verdadeiro destino. Incomodado, sentiu-se desconfortável, transformando pensamentos em imagens sombrias. Isto porque se registam acontecimentos que o ultrapassam, revelações que não consegue confirmar, mas que alimentam pressupostos preocupantes. Surpreende conversas que acabam quando se aproxima, recebe pedidos dos grandes nobres para abandonarem o país, razão mais do que suficiente para o rei pensar que algo está para acontecer. Indisposto com o clima do diz-que-disse, boatos intencionalmente infundados e de origem desconhecida geram no rei uma grande necessidade de descobrir o que até ver não passaria de suspeições. O rei, sempre temente a Deus e à Santa Madre Igreja, sem contudo partilhar os obcecados fundamentalismos do infante Henrique ou os exageros devocionais do infante Fernando, ficava mais perto da pragmática militância cristã do infante Pedro. É dentro deste estado de espírito que receberá, sem entender porquê, um pedido de audiência do irmão mais novo, o qual considerou despropositado, dada a relação próxima que tinha com ele. Deste modo pensando, como resposta, Duarte I mandou ao irmão um mensageiro sem mensagem escrita, pois não pretendia ser demasiado protocolar, quando a pessoa a quem se destinava o recado não era de cerimónias: sua senhoria o nosso amado rei, enviou-nos dizer que vos espera; pediu-me também que vos lembre de que sereis sempre bem recebido, isto porque não percebe o tamanho de tanta formalidade.
Desmontando da alimária, em vénia respeitosa, o cavaleiro ficou a aguardar por uma resposta. Enganou-se. O infante Fernando, um tanto desarmado, pressentiu no recado do rei uma crítica, e deste modo apenas permitiu ao homem desfazer o salamaleque e aguardar pela réplica, porque tinha ainda de pensar na refutação. A resposta deveria ser simples, refutar era desajustado, um sim ou um não chegavam, por que razão se punha o infante Fernando numa posição defensiva e de semblante fechado? Sem aviso, o infante virou as costas ao cavaleiro na direcção da casa, por coincidência localizada nas suas terras de Salvaterra, mesmo ao lado do Paço de Almeirim, que com elas fazia extrema e onde o monarca Duarte se quedava por essa altura. João Rodrigues, escudeiro servil, homem da sua intimidade e confiança, foi atrás dele. Conhecia-lhe os hábitos e toda as sequências do quotidiano, e nesta conformidade o aio não tinha qualquer dúvida sobre o caminho que levavam os seus passos, encontrando-o junto do altar da capela pessoal, dentro da câmara, onde muitas vezes resistia ao sono para em oração se oferecer a Deus. Era uma rotina diária, preenchida de constantes e piedosas rezas, acrescentando à sua extensa lista de divindades outros motivos para rezar.
Sem mais santos para velar, continuava as preces entremeando vigílias com jejuns diários, em nome das construções imateriais que lhe devoravam a cabeça. Dominado pelo sectarismo religioso, entregava a alma a Deus, a Cristo, a todos os santos, também à Igreja, que lhe alimentava o facciosismo e ficava com os bens. João Rodrigues, quase a sua alma gémea, convivia com todo este fervor religioso, ele próprio partilhava os serões e as sentinelas, privando-se do sono para seguir disciplinado o seu amo. É verdade que ultimamente lhe tinha espreitado no semblante um abatimento fora do habitual, já não o cansaço provocado pela fome e pela subtracção do sono, apercebendo-se de que se tratava de uma coisa mais íntima, um sentimento que o fazia sofrer, e já não o êxtase do sofrimento. Preocupado, deteve-se de pé junto da ombreira da porta do quarto, em silêncio, à espera que o infante Fernando pusesse fim à mediação encetada com a divindade e lhe revelasse a resposta que havia de dar ao escudeiro de do irmão Duarte. De onde estava via-lhe sem dificuldade as costas, não tão bem como se o visse à luz do dia, mas o suficiente para lhe ver explícitos os contornos do corpo genuflexado. Reparou como o infante se levantou lentamente e como fez a última saudação, seguida do sinal da cruz, ligações divinas mais eficazes quando feitas sob restrição da claridade, dentro dos templos, que neste caso era um pequeno oratório no interior do quarto. Viu-o depois virar-se, seguir na sua direcção, percorrer a distância de cabeça baixa e olhar no chão, parando para lhe dirigir a palavra mansa, monocórdica, enlevada: dizei ao criado do rei que quinta-feira depois da vigília da Santa Cruz de Setembro, mais para a tarde, me avistarei com ele e que lhe agradeço o tempo que se dispõe ceder-me. Depois, só para João Rodrigues ouvir, lembrou-o: amanhã não posso, é quarta-feira, jejuo todo o dia. A tal quinta-feira chegaria. Duarte I, numa tarde aborrecida cheia de trabalho, viu chegar o irmão até si e saudá-lo pronunciadamente, gerando nele um comentário enfastiado. Senhor, meu irmão, de vós não mereço tamanha reverência, disse-lhe o rei». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de CAutor/JDACT

terça-feira, 2 de setembro de 2014

O Mouro Lazeraque e o Infante Fernando. Um ‘Exemplum’ de Jerónimo Osório. João Nunes Torrão. «Mas o exército cristão vai sofrer um revés, resultado de uma traição, diz Osório e, como consequência, o ‘Infante Fernando’ fica preso às ordens dos mouros para, mais tarde, sofrer a deportação para o interior da Mauritânia»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Mouro Lazeraque e o Infante Fernando
«(…) Osório, ao responder a uma interpelação de Agustin, pretende demonstrar que as opiniões manifestadas pelas multidões sobre os mais diversos assuntos não diferem, no essencial, das opiniões defendidas pelos homens sábios. E, para melhor defender esta ideia, vai servir-se de alguns exemplos: assim, inicialmente, tenta comprovar, através da utilização do exemplo de Príamo, que os próprios inimigos reconhecem a virtude e o valor, mesmo quando estes se encontram nos seus antagonistas. Mas, para que a demonstração seja ainda mais convincente e prove, afinal que há em todos os homens, de forma inata, uma opinião correcta e justa, vai apontar vários casos em que inimigos públicos e declarados da virtude deram mostras de uma profunda admiração por aqueles que a praticavam e, em outros casos, chegaram mesmo a pô-la em prática, dentro de alguns aspectos particulares. O primeiro dos exemplos apontados é uma personagem de Eurípides, Fedra, e Osório chega mesmo a apresentar uma tradução de sua autoria dos versos de Hipólito.
Depois faz também uma breve referência à figura de Medeia para, de seguida, deslocar a sua intervenção do campo das fábulas, como ele próprio diz, para o de algumas personagens históricas. A primeira que nos é apresentada é Dion, tirano de Siracusa, que, apesar de todos os seus crimes, fica profundamente impressionado com a amizade de dois discípulos de Pitágoras e chega mesmo a desejar entrar no círculo dessa amizade; volta ainda a referir-se a esta personagem para narrar a frontalidade e dignidade com que a irmã o enfrentou. Faz depois uma breve referência ao tratamento que o filho deste tirano deu ao filósofo Platão e vai demorar-se algum tempo a apresentar a figura de Nero. Chega, finalmente, a descrição da morte do Infante Fernando que tem como objectivo imediato utilizar em favor das ideias que está a defender a reacção de Lazeraque a essa mesma morte. Logo após esta descrição, Osório apresenta o seu comentário às palavras de Lazeraque, reforçando, através da repetição e de algumas considerações complementares o ponto de vista que pretende demonstrar.
Esta apresentação da morte do Infante Fernando é feita de uma forma muito sintética, mas sem, no entanto, deixar de referir de modo claro os dados que, na sua óptica, são fundamentais. Assim, começa por chamar a atenção do seu antagonista para o facto de ir utilizar um exemplo que se refere a uma personalidade da história portuguesa:
  • In re tamen adeo perspicua unico tantum eoque recenti atque domestico contentus ero (Contudo, em assunto tão evidente, vou limitar-me a um único exemplo e mesmo este recente e nacional).
Faz, em seguida, a idenficação da personagem em causa, através da referência ao nome próprio e ao nome do pai, e situa a acção em termos cronológicos e de espaço geográfico, com o registo do reinado do rei Duarte I e da deslocação para África. Indica ainda que, do ponto de vista militar, a situação nesta campanha africana era a vitória das tropas portuguesas:
  • Fernandus quidam fuit regius Lusitaniae prínceps, Ioannis regis hoc nomine primi filius. Is, defuncto patre, cum ab Eduardo rege illius fratre exercitum cum imperio obtinuisset, in Africam traiecit atque signis collatis ita parua manu cum innumerabili hostium multitudine saepe conflixit ut sempre ex illis uictorium reportaret (D. Fernando foi um magnânimo príncipe português, filho do rei D. João, o primeiro com este nome. Este príncipe, após a morte do seu pai e depois de obter do rei D. Duarte, seu irmão, o comamdo de um exército, passou a África. Aí, em batalha campais, lutou muitas vezes com pequenos contingentes contra uma multidão inumerável de inimigos e com tal denodo que sobre eles sempre alcançou vitória).
Mas o exército cristão vai sofrer um revés, resultado de uma traição, diz Osório e, como consequência, o Infante Fernando fica preso às ordens dos mouros para, mais tarde, sofrer a deportação para o interior da Mauritânia:
  • Sed tandem effectum est ut insidis oppressus in hostium potestatem perueniret et in mediterrâneas Mauritaniae regiones deportaretur (Ora, sucedeu, por fim que, vencido à traição, caiu em poder dos inimigos e foi deportado para as zonas interiores da Mauritânia)».
In João Manuel Nunes Torrão, O Mouro Lazeraque e o Infante Fernando. Um ‘Exemplum’ de Jerónimo Osório, Revista Biblos, volume LXVII, Universidade de Coimbra, 1991.

Cortesia de Biblos/JDACT

sexta-feira, 30 de maio de 2014

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «… as trombetas e charamelas dos músicos dentro do Paço Real, juntamente com os sinos da Sé, ali mesmo em baixo, começaram a troar os seus fortes sons, sinais indistintos do momento em que o rei seria aclamado»

jdact

O Princípio
«(…) Após uma breve pausa para retomar o fôlego, o judeu afinou as cordas vocais para concluir o que no seu entender correspondia à salvação do infante: - Ordenar-vos-ia se a minha autoridade chegasse a tanto. Como não chega, rogo-vos, rastejo a vossos pés para que adieis o acto que estais prestes a concretizar. O meu amo, ponderai. É que não vos custa nada adiar por umas horas a cerimónia, para serdes feliz. Sem pronunciar palavra, o príncipe, via-se bem, tinha chegado ao último dos limites que concedera a Abraão Guedelha e a si próprio. Num gesto compreensível, mandou levar o inconsolável cientista, passando das mãos nobres dos infantes para as mãos rudes dos guardas reais e dali para longe do rei. Debilitado, Guedelha, mesmo assim, quis mostrar que a força cansada do corpo não se reflectia na voz. Encheu os pulmões de todo o ar que pôde e num brado disse as palavras malditas: - Não me dais ouvidos? Não quereis ser feliz? Rejeitais as poderosas razões dos astros? Então, o teu reinado será de grandes tormentos.
O silêncio que se seguiu às palavras do mestre significou mais um pesadelo do que um momento de reflexão, pois uma maldição acabava de cair sobre aquele que iria governar Portugal. Ninguém naquela reunião entendia de astrologia, a não ser o mestre, mas todos ficaram silenciosos, ainda mais porque em forma de premonição acabavam de escutar um mau agoiro. Agitado, levado aos encontrões, ao mestre de nada lhe valeu estrebuchar. Convinha até que o não fizesse, porque os limites da sua segurança física estavam azero, e dali em diante, tudo quanto dissesse voltar-se-ia contra si, expondo a sua integridade claramente ameaçada. Não desconhecia que se tinha excedido, receava até pelo que lhe viesse a acontecer, muito embora confiasse na bondade do rei e no momento de grande elevação que se vivia na corte. Martirizava-se, no entanto, quando pensava naquele homem sem tempo, por quem era capaz de tudo, até de morrer. A cerimónia seria antes do meio-dia, pensou Guedelha, que fosse. Servia-lhe tão bem como até ali, mas, infelizmente, adivinhava o Mestre, mais vezes, em condições bem mais difíceis e por menos tempo.
Livre dos comentários do físico, o rei Duarte abandonou o local da controvérsia, num passo levitado, deixando que o seu corpo cumprisse o que a mente lhe pedia. Saboreando cada contracção dos músculos, sentou-se no cadeirão real para dar início às cerimónias. Ali perto, do outro lado das muralhas, ouviam-se as vozes dos populares. Não tinham os problemas transcendentais dos senhores do castelo, estavam limpos tanto quanto podiam, vestiam-se do que tinham de melhor, não renegavam a sua condição de servidores de todos os serviços. Homens e mulheres, jovens ou velhos, gritavam estridentes vivas ao infante, entremeadas de excessos verbais que lhes ficava bem e os divertia. Os homens, sempre em maioria, entontecidos pela excitação da maralha e pelo vinho que corria nas gargantas, de borla, pela graça de sua senhoria o príncipe Duarte, empunhavam nas mãos engrossadas por trabalhos agressivos as suas alfaias, reconhecimento provado de uma identidade social e profissional. Cavadores ou abegões, regateiras ou vendedeiras, estavam todos convictos de que a sua presença era indispensável naquele momento de exaltação.
Os moços, menos atentos aos actos institucionais, fossem eles mancebos da lavoura, das ovelhas ou aprendizes das mais diversas profissões, perseguiam-se entre a multidão em correrias e esquivas nem sempre conseguidas. Entretanto, dentro do castelo, tudo se preparava para confirmar a sucessão do filho varão de João I e de D. Filipa de Lencastre. Depois de um silêncio reclamado, as trombetas e charamelas dos músicos dentro do Paço Real, juntamente com os sinos da Sé, ali mesmo em baixo, começaram a troar os seus fortes sons, sinais indistintos do momento inesquecível em que o rei seria aclamado». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. Autor/JDACT

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O Infante Fernando de Portugal. Senhor de Serpa (1218-1246). Armando S. Pereira. «É assim que, por sua própria iniciativa ou por alguém que o impele a isso, “Fernando” começa a intervir, de uma forma especialmente brutal, na então conflituosa vida política do Reino»

Cortesia de wikipedia

História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante
«(…) Esta é uma das muitas bulas relativas à questão do infante de Serpa, todas publicadas por Domingos Sousa Costa, Mestre Silvestre e Mestre Vicente, juristas da contenda entre Afonso II e suas irmãs. Braga. 1963. Na verdade, o testamento paterno estabelecia que os infantes só recebessem a sua respectiva parte quando habeant roboram. Fernando atinge os 14 anos em 1232, ano da conquista de Serpa, exige o que lhe é devido e é então que o seu irmão estabelece tal acordo: concede-lhe o senhorio daquela terra a par de uma certa quantia em dinheiro, em troca da renúncia àqueles bens.
Homem muito activo mas com fraca capacidade de gestão, pouca atenção parece ter dado à sua terra. Estabelecida aqui a sua residência, é provável que nos primeiros anos daqui tenha partido com a sua mesnada em correrias contra os muçulmanos, podendo até ter participado nas tomadas de Beja, Aljustrel e Alvito, entre 1232-1234. É também verdade que mostra alguma preocupação em se enquadrar nas redes de poder que se iam tecendo na região: em 1235 envia uma carta ao seu homónimo Fernando, bispo de Évora, submetendo à sua jurisdição o castelhum meum de Serpa, e declarando o mesmo bispo patri meo spirituali fidelis filius, entregando-se à sua vassalidade. Mas a estabilidade que as tarefas de gestão patrimonial exigiam, sobretudo numa região tão instável e pobre como era a de fronteira, era avessa a um protagonismo político que desde cedo começa a afirmar. Por volta dos anos de 1236-1237 já se encontra envolvido em graves conflitos que ocorreram em algumas regiões do país, depois as viagens a Roma e Castela, que são os percursos de um atribulado itinerário que termina em deambulações e guerrilhas lá para as terras altas da Beira. Talvez, e em parte como consequência de tudo isto, numa carta de 16 de Outubro de 1273 Afonso III ordenava ao alcaide, juízes e tabelião de Évora que inquirissem sobre as presúrias que tinham sido realizadas desque Serpa fora filhada a Mouros aca ordenando que, a partir daquela data, passem a ser os sesmeiros indigitados pelo concelho a organizar e controlar essas acções populares conducentes à repartição e amanho das terras. Parece, portanto, que o infante, com outros objectivos em mente, pouco cuidado pôs no ordenamento jurídico e administrativo daquele espaço que era o seu, deixando-o à livre iniciativa dos presores. Perdeu, porém, a oportunidade de criar um poderoso senhorio, enquanto espaço politicamente definido e autónomo, tendo em conta a favorável posição geográfica em que se encontrava, um enclave duplamente fronteiriço, com Castela e com o Islão, o que lhe permitiria ter estabelecido pactos e alianças, o que lhe teria dado a possibilidade de participar directamente na Reconquista e engrandecer-se com os réditos, territoriais e móveis, que daí poderia ter usufruído. Tal como o senhorio que, mais tarde, o infante Afonso, segundo filho de Afonso III, tentou criar na zona de Portalegre, em 1271 (sobre as circunstâncias da política portuguesa e peninsular subjacentes à formação deste senhorio, cf. Bernardo Sá Nogueira, a constituição do senhorio fronteiriço de Marvão, Portalegre e Arronches em 1271. Antecedentes regionais e significado político, in A cidade. Revista cultural de Portalegre, nova série, Portalegre. 1991).
Mas as suas preocupações eram, decerto, outras, os seus olhos de homem da guerra viravam-se para outros horizontes. Horizontes políticos, não espaciais, pois na verdade a estratégica posição de fronteira em que se encontrava proporcionava-lhe muito espaço de actuação, se fosse essa a sua vontade. Ao mesmo tempo que limitava a sua ambição, pois aí estava reduzido a pequeno senhor rodeado de outros maiores, quer fossem os bispos das dioceses quer fossem mestres e comendatários das ordens militares (limitado pela fronteira natural que era o próprio Guadiana, o infante teria as suas possíveis pretensões de expansão controladas, a Norte pelos domínios da Ordem de Avis e a sudoeste pela forte presença da Ordem de Santiago. Para Oriente defrontava-se com o avanço reconquistador castelhano-leonês, e se de facto era seu desejo a participação na guerra, era aí que teria maiores e mais fecundas oportunidades de o fazer). É assim que, por sua própria iniciativa ou por alguém que o impele a isso, Fernando começa a intervir, de uma forma especialmente brutal, na então conflituosa vida política do Reino». In Armando Sousa Pereira, O Infante Fernando de Portugal, Senhor de Serpa (1218-1246), História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante, Estudo apresentado em Setembro de 1997, Seminário “A nobreza medieval portuguesa: parentesco, identidade e poder”, dirigido por Bernardo Vasconcelos Sousa, revista Lusitânia Sacha, 2ª série, 10, 1998.

Cortesia de LSacha/JDACT

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O Infante Fernando de Portugal. Senhor de Serpa (1218-1246). Armando S. Pereira. «A atribuição que lhe é feita do senhorio da terra de Serpa, na fronteira mais meridional com o Islão, surge quase como um prémio ou reconhecimento da sua maioridade, e aí podia exercitar amplamente as suas virtudes guerreiras»

Cortesia de wikipedia

História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante
«(…) Livro que invoca e reactualiza a memória dos mortos, confinada ao espaço sacralizado do templo. Os outros, os livros da vida, mergulham-no no esquecimento. Incompreensivelmente. De facto, nobiliários e crónicas não podiam ser mais lacónicos a seu respeito, mencionando-o apenas na linha de descendência de Afonso II, sem qualquer menção de relevo. Desaparecido o seu corpo, perdido o nome entre as episódicas e vagas anotações dos pergaminhos, esquecido o personagem nos densos textos pontifícios que, ora com violência ora com compaixão, o evocam, assim tem permanecido olvidada a sua memória.

NOTA: O infante D. Fernando aparece muitas vezes citado por Alexandre Herculano a propósito da sua intervenção na crise do reinado de Sancho II, em particular sobre os seus conflitos com a Igreja; cf. História de Portugal. Desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III. Lisboa, 1980, ed. Crítica de José Mattoso; e é nesta perspectiva que tem sido evocado o seu nome nas histórias gerais de Portugal, de que basta citara mais recente, de José Mattoso, História de Portugal. Lisboa, 1992, vol. II; a figura do infante mereceu um esboço biográfico mais detalhado ao conde de Ficalho; o infante D. Peruando de Serpa, in Notas históricas acerca de Serpa, Lisboa, 1979 (a 1ª ed. é de 1904), pp. 99-107. Depois da pequena nota biográfica da Grande enciclopédia portuguesa e brasileira, Lisboa-Rio de Janeiro, s/d, vol. XI, o Dicionário de História de Portugal (dir. Joel SERRÃO), Porto. 1984. vol. II, reduze-o a algumas poucas palavras. Os elementos prosopográficos da sua vida foram actualizados por Leontina Ventura, A nobreza da corte de Afonso III, Coimbra. 1992, vol. II tese de doutoramento policopiada.
Sobre Afonso II e o significado da conquista de Alcácer no contexto do seu reinado, cf. Luís R US; Afonso II. D. (I 185-1223); in Dicionário ilustrado da História de Portugal, Lisboa, 1985, vol. I; um estudo muito minucioso, com recurso a fontes coevas, encontra-se em Maria Teresa Lopes Pereira; Memória cruzadística do feito da tomada de Alcácer (1217), segundo o Carmen de Gosuíno; in 2º Congresso histórico de Guimarães, D. Afonso Henriques e a sua época; Actas, Guimarães, 1997.

Quando o infante Fernando nasceu, o seu pai devia comemorar ainda com júbilo a vitória sobre Alcácer do Sal, conseguida alguns meses antes, em Outubro do ano de 1217; apesar de aí não ter participado directamente, atacado pela doença e envolvido que andava na administração do Reino, trata-se do único grande triunfo sobre o Islão durante o seu reinado. Já desde 1212 que o poderio almóada declinava na Península, e o Andaluz era uma faixa de terra cada vez mais estreita em acelerada regressão para o Mediterrâneo, mas será sobretudo a partir dos últimos anos da década de vinte do século XIII, quando surgem as terceiras taifas, que a grande Reconquista avança em todas as frentes: catalães e aragoneses ocupam as Baleares em 1229 e o Reino de Valência a partir de 1232; depois das conquistas de Cáceres, em 1227, e Badajoz, em 1230, castelhanos e leoneses, unidos em Fernando III, lançam-se à conquista das praças da Estremadura e avançam sobre o vale do Guadalquivir durante a década de trinta, em direcção às vastas, ricas e urbanizadas planícies do Sul. É também por estes anos que os portugueses ocupam o vale do Baixo Guadiana: após o fracasso de Elvas em 1226, a ocupação do Alentejo e do Algarve é relativamente rápida, pelo abandono de algumas praças por um Islão fragmentado e dividido, pela simultaneidade da reconquista castelhana, pela participação dos profissionais da guerra que eram os cavaleiros das ordens militares e ainda com o auxílio das milícias concelhias, mais do que por uma suposta actuação e iniciativa de um rei de infrutífera belicosidade. É neste panorama que tem lugar a conquista de Serpa, conseguida pela acção de Afonso Peres Farinha, prior do Hospital, Ordem que passa a controlar as principais praças da margem esquerda do Guadiana .
Corria o ano de 1232 e o infante Fernando, agora com 14 anos, a mesma idade com que o seu bisavô se armou cavaleiro na catedral de Zamora, já se podia orgulhar de também ele ser cavaleiro, uma vez alcançada a idade de rebora, entrando assim no mundo dos adultos, um mundo de guerreiros e aventura, onde o prestígio se alcança pela qualidade das façanhas realizadas. Foi nesta ambiência que cresceu e se fez homem, entre as armas, a violência, o sangue e as histórias das proezas, mais ou menos fantasiosas, que ouvia contar. Não se sabe quem foi o responsável pela sua educação, ou quem o acompanhou de perto nesta primeira fase da sua vida, mas se quiseram fazer dele um homem de guerra, conseguiram-no perfeitamente.

NOTA: Sobre as representações mentais que modelam e dão consistência ao grupo nobre, e o comportamento social daí resultante, marcado pela guerra, pela violência e pelo culto da força física, veiculadas e cristalizadas num determinado modelo educativo cf. José Mattoso, Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325), 5ª ed. Lisboa. 1995. Para uma interpretação do papel da agressividade no contexto das estruturas sociais da Idade Média, La civilisation des moeurs. Paris. 1995.

A atribuição que lhe é feita do senhorio da terra de Serpa, na fronteira mais meridional com o Islão, surge quase como um prémio ou reconhecimento desta sua maioridade, e como terra de fronteira que era, aí podia exercitar amplamente as suas virtudes guerreiras. Não são claras as circunstâncias em que este senhorio lhe foi atribuído, na ausência de documento que o confirme, mas é prova concludente o facto de assim sempre se intitular e ser denominado. Mesmo assim, vejamos, em hipótese, como isto se processou. No seu último testamento, de Novembro de 1221, Afonso II deixava parte dos seus bens móveis aos filij mei et filia me a quos habeo de Regina doitina Vrraca et inter ipsos equaliter dividantur. Avancemos um pouco no tempo. Em 22 de Dezembro de 1239, na bula Constitutus in presentia nostra. Gregório IX ordenava ao bispo de Osma e ao abade de Valladolid que anulassem o contrato feito entre o infante e o rei Sancho, seu irmão, no qual o primeiro renunciava aos bens a que tinha direito pelo testamento paterno e àqueles que lhe eram devidos pela morte de sua irmã Leonor em 1231; provavelmente teria sido a pedido seu ao queixar-se ao papa do facto de naquela altura ainda ser minor, e por isso ter ficado lesado em tal acordo». In Armando Sousa Pereira, O Infante Fernando de Portugal, Senhor de Serpa (1218-1246), História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante, Estudo apresentado em Setembro de 1997, Seminário “A nobreza medieval portuguesa: parentesco, identidade e poder”, dirigido por Bernardo Vasconcelos Sousa, revista Lusitânia Sacha, 2ª série, 10, 1998.

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