Um irmão mal sintonizado
«(…) No entanto, nesse dia não estava para se deixar manobrar, já que
decidira não sair dali sem uma resposta: Senhor, é preferível abalar para onde
a aventura me chama do que viver no reino com a indignidade de não fazer nada
por minha honra e acrescentamento. Vim dizer-vos, entre outras coisas, que
nunca mais quero ser tratado como até aqui, menosprezado nas minhas qualidades
e na minha dignidade. Desta vez o monarca Duarte I não o interrompeu. Sou o
mais pobre de vós, prosseguiu o infante Fernando no mesmo tom. Sou também
aquele que menos glória juntou à sua honra e menos respeito ganhou da nação. O
que sou eu então? E ele a dar-lhe, aborrecia-se Duarte I. Pobre rei. Afundando-se
no cadeirão real, triste, incapaz de ser desagradável com o irmão, pensava nas
cartas que o infante Pedro lhe dirigiu de Bruges, lembrando-se de ter lido num
dos manuscritos alguns conselhos que ilustravam bem o que ultimamente se
passava: … preparai-vos. De entre os
pedidos que vos chegarão, alguns terão uma direcção precisa e dirigida à arte militar,
confundindo lucros próprios com interesses colectivos. São tentativas para usar
a coroa como fachada, oficializar acções pare as quais não tendes vontade nem
trazem nada de bom ao reino, mas que vos implica mais do que aos que as cometem.
Não valia de nada ao rei divagar. O problema estava ali mesmo à sua frente,
teria de se confrontar com ele e nem sabia o que estava para vir.
Devolvido dos seus pensamentos, reparou na figura tolhida de Fernando e
não gostou do que viu. A sua análise sugere-lhe que o deve desafiar em vez de
comiserar mostrar-lhe que o seu destino não lhe é indiferente, mas para isso
precisa que as falas tenham a clareza que a relação entre irmãos deve ter.
Convencido de que Fernando se pode abrir com ele, incita-o a revelar os recados
que traz escondidos: irmão, quem
melhor do que eu sabe quem vós sois. Haverá alguém no reino que vos conheça e
ame mais do que eu? Concordai comigo, peço-vos, deixai antes que eu perceba o
que vos traz até mim, abri o vosso coração magoado, clarificai o pensamento
encoberto. Assim instado, Fernando foi direito ao assunto: … tenho trinta e quatro anos. Os meus bens
não são nem metade daqueles que os infantes nossos irmãos têm. Hoje vejo-me em
dificuldade para pagar aos meus o que de justiça e direito lhes devo, situação
de aperto desprestigiante, indigna num nobre da minha qualidade. Mereço mais,
ambiciono mais, mas não se trata apenas de bens. É grande a minha vontade em
servir no reino de Inglaterra, onde o reconhecimento da família de nossa mãe me
dará a importância que aqui não tenho e os cabedais que cá não possuo.
Para o rei, o dia não era diferente dos outros, e a circunstância de o
irmão o requisitar não lhe alterava os hábitos nem os afazeres. Não estava em
Lisboa, onde não podia deixar de mostrar as insígnias reais, mas nem lhe
passava pelo pensamento fazer o mesmo no Paço de Almeirim. De cabeça
descoberta, pendurou no corpo uma camisa de cetim, ou gibão forrado, preferindo
este aos de chumaços, que enformavam mais a sua forte compleição. Um cinto
pouco apertado cingia-lhe mal a cintura, para deixar cair direito o gibão até
meio das coxas fortes, abrigadas por umas calças de tecido de lã com reforço
nas partes pudentes. Perante o irmão, parecia um mesteiral. Contudo, não era
por isso que a conversa não continuava nem que o seu interlocutor se ia embora.
Não é aceitável que nobres de tão alto gabarito abandonem a pátria,
retomou Duarte I a conversa. Deixam para trás os seus haveres e famílias, à
procura de um pouco mais daquilo que aqui têm, esquecem afectos, tradições, a
língua materna, desvestem-se das suas responsabilidades para com o país. Que
dirão de nós as cortes europeias? Certamente pensarão que Portugal não tem
quanto baste para sustento de tão dignas personagens, o que é errado e
desprestigiante. Quereis vós engrossar o número dos que me abandonam e
desencantam? Preocupado, Duarte I perscrutava razões e estratégias para fazer
face a um mal-estar provável. De facto o conjunto de apreensões manifestadas
pelo rei tinha razão de ser. Os indícios que pressentia começavam a sugerir
intromissões sub-reptícias da nobreza na política da coroa, exigindo do monarca
reflexões atentas. Para estes senhores, Portugal prosseguia um período demasiado
dilatado de paz, favorável a Duarte I, importante para a vida do reino, mas que
os levava à ruína». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos
Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-724-067-6.
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