domingo, 2 de agosto de 2015

Os Lagóias e os Estrangeiros. Garcia Castro e Raul Ladeira. «Não há critério seguro para distinguir o homem dos animais. O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não»

raul ladeira 
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Os lagóias
Orbis pictus
«Ao lusco-fusco das manhãs de Outono,
estações do ano são humores do vida!,
homens do peixe do senhor Rabinha,
seus fatos negros de borracha húmida,
entre o estertor das camionetas Diesel
arrastam os caixotes reluzentes
o assobiar de fresco ao nevoeiro.
                            
As motoretas passam a grasnar
roufenhas, oleosas, proletárias,
de capacetes e faróis acesos,
um gosto popular de cosmonautas.

De quantos lados chegam! As mulheres,
de alcofas pela mão e as grandes nádegas,
já debruçadas, para aviar a praça,

gulosas do café com massa frita,
do qual o cheiro alastra, uma doçura,
o largo, os automóveis, e o meu quarto.

Ao lado, no Quartel, os corneteiros
já diluíram os clarins dolosos
sobre o cinzento do verniz dos plátanos.

Da serra para o mercado há os que passam
com suas botas de ferrar o chão,
ao bafo do vapor azul discreto
de algum oficial à porta-d’armas.

As bestas e as carroças de hortaliça,
impacientes, fumegando, chiam,
rangem os aros de metal dos rodas,
batem os cascos, rifles, na calçada.

Rapazes pobres do trabalho em obras,
andámos todos já na mesma escola,
nem é de mais que algum seja bombeiro,
falam-me sempre para fumar comigo.

Sete horas da manhã. Meia p’rás oito.

O apito do fábrica da Rolha
espichou agora, em sobressalto, vivo,
seu arrepio de esganar o ar…

Que pena o d’Assumpção, que se matou!

Talvez imaginasse apetecer-lhe,
aqui de Portalegre, alucinado,
um copo de nevoeiro».
In Portalegre, Setembro 1970

In Carlos Garcia Castro e Raul Ladeira, Os Lagóias e os Estrangeiros, edição da CM de Portalegre, 1992, Depósito legal nº 53094.

Cortesia de CMP/JDACT