segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Médico de Homens e de Almas. Taylor Caldwell. «Eu obedeço aos deuses e às leis dos meus pais. Há orgulho numa tal sujeição, uma vez que é voluntária e exigida a todos os homens honrados. Um homem sem disciplina é um homem sem alma»

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«(…) Eneias suspirou e beijou encarecidamente a testa alva da esposa. Quem se ocuparia dos assuntos dos romanos em Antioquia, faria a escrita e supervisionaria os capatazes dos escravos? Ah, estes romanos gananciosos e aproveitadores! Roma é um abismo onde silenciosamente se afunda toda a riqueza e trabalho do mundo, um abismo de onde não discende, nem nunca ascendeu, qualquer tipo de música. Íris, cordialmente, absteve-se de lembrar ao marido a existência de Virgí1io. Eneias costumava desdenhá-lo em relação a Homero. Eneias sentia-se ofendido por o patrão ser apenas um rude tribuno e um augustal. Era verdade que muitos dos tribunos romanos eram augustais, mas tal não era o caso de Diodoro, que odiava os patrícios e elevara Cincinato à categoria de herói. Diodoro tinha uma educação considerável e um intelecto a condizer, descendendo de uma sólida e virtuosa família de soldados, mas fingia comungar do desdém que os soldados sempre professam pelos homens dados aos assuntos do espírito.
Abraçava no seu peito as virtudes arcaicas e simulava ignorância em relação ao que sabia, usando as palavras rudes e simples dos soldados para quem os livros são coisas desprezíveis. De celta forma, Diodoro demonstrava fartas afectações quanto Eneias. Ambos eram fraudes, pensava Íris tristemente. Mas eram também fraudes dignas de compaixão. Pouco importava que Eneias mostrasse complacência para com o soldado cujo pai o libertara, ou que Diodoro abusasse deliberadamente da gramática e exibisse modos grosseiros. O pai de Diodoro, um homem digno com qualidades nobres, comprara o jovem Eneias a um conhecido famoso pela sua crueldade extrema para com os escravos, uma crueldade que se tornara infame até entre aquele povo cínico e insensível. Dizia-se que não possuía um único escravo que não tivesse cicatrizes: dos trabalhadores dos campos, vinhedos e olivais às mais jovens escravas de sua casa. Apesar das leis existentes, não se coibia de matar impiedosamente e a seu bel-prazer qualquer escravo que lhe desagradasse, tendo concebido formas de tortura e de morte que lhe proporcionavam enorme deleite. Augustal oriundo de famílias orgulhosas, embora decadentes, e de imenso poder e riqueza, era também senador, e dizia-se que o próprio César o temia.
Apenas um homem em Roma se atrevia a menosprezá-lo publicamente: o virtuoso tribuno Prisco, pai de Diodoro, amado pelas multidões de Roma que, embora tão depravadas e corruptas como os seus amos, honravam a sua integridade e as suas qualidades militares. As multidões admiravam até a sua bondade e justiça para com os escravos, algo paradoxal num povo para quem um escravo era menos que um animal de quatro patas. Eneias, o escravo grego, trabalhara nas terras do senador e ninguém sabia ao certo como Prisco o tinha adquirido, excepto Eneias, que nunca falava do assunto. Mas Prisco comprara o jovem ferido e alquebrado, trouxera-o para sua casa, chamara o médico para que fosse tratado e atribuíra-lhe funções no seu lar, apenas exigindo obediência.
Todos devemos obediência, dissera austeramente Prisco ao seu escravo. Eu obedeço aos deuses e às leis dos meus pais. Há orgulho numa tal sujeição, uma vez que é voluntária e exigida a todos os homens honrados. Um homem sem disciplina é um homem sem alma. Eneias era iletrado, mas era rápido, respeitoso e possuía uma mente sagaz e ordeira. Prisco, que acreditava que todos os homens, até mesmo os escravos, deviam desenvolver plenamente o seu potencial, permitira que Eneias se sentasse num canto do quarto onde o seu filho recebia as lições. Num espaço de tempo extraordinariamente curto Eneias alcançara Diodoro. A sua memória era prodigiosa e passado pouco tempo, Eneias, sob as ordens de Prisco sentava-se já num canto da mesa onde Diodoro estudava com o seu tutor». In Taylor Caldwell, 1959, Médico de Homens e de Almas, tradução de Margarida Luzia, A Esfera dos Livros, 2009, ISBN 978-989-626-153-5.

Cortesia de EsferaLivros/JDACT