sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A Rosa de Alexandria. Maria Lucília Meleiro. «Depois de limpo e purificado com as trinta e seis diferentes substâncias requeridas, será primeiro enfaixada a mão esquerda, na qual brilhará um anel; sobre as ataduras figurará uma representação de Isis e de Hapi»

Cortesia de wikipedia

«Ninguém me é estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)

A morte da águia
«(…) Depois vem Ptolomeu Ceraunos, meio-irmão da rainha, que por amor de um trono manchou as mãos de sangue assassinando os sobrinhos, seus enteados, jovens vidas de dezasseis e treze anos, enlevo da rainha Arsínoe II, acabando por perder a vida de forma inglória, enredado na teia dos crimes que ele próprio tecera. E a sarabanda espectral prossegue com Satyros, o general sem medo, que nas noites do cão, em que Sothis de novo resplandece no firmamento anunciando a inundação iminente do Nilo, se escapa do túmulo e busca na boca de desconhecidas ocasionais o gosto dos beijos da sua amante. Numa grande casa branca rodeada por um austero e alto muro abriga-se uma espaçosa sala com uma única janela situada muito acima, onde os embalsamadores se dedicam à sua tarefa de execução da beleza imortal. Ao longo das paredes encontram-se fixadas várias mesas de pedra do tamanho do corpo de um homem. Reina um intenso odor a resinas da Fenícia e betumes de Biblos. Nos cantos vêem-se alguns vasos de alabastro repletos de objectos preciosos, amuletos, e também ouro, prata, pedaços de lápis-lazúli, jaspe verde, cornalina, ametista e cristal. Lá ao fundo encontram-se os recipientes de cinadrio e goma para dissolver as folhas de ouro destinadas a pintura.
Tintas e vernizes amontoam-se por toda a parte, e uma pequena mesa articulada exibe uma infinidade de complicados objectos destinados a facilitar aos preparadores de cadáveres o seu mester. A porta abre-se e assomam dois homens envergando roupas leves de linho branco. Um terceiro que os acompanha aproxima-se da mesinha e retira um ferro curvo destinado a extrair o cérebro do cadáver pelas narinas. Em seguida o paraskhites irá proceder à costumeira incisão no flanco esquerdo. Junto da mesa podem ver-se quatro magníficos vasos canópicos de alabastro finamente trabalhado. Mais tarde, depois de quarenta ou mais dias mergulhado no tanque de natrão, o corpo ficará pronto para o enfaixamento. Depois de limpo e purificado com as trinta e seis diferentes substâncias requeridas, será primeiro enfaixada a mão esquerda, na qual brilhará um anel; sobre as ataduras figurará uma representação de Isis e de Hapi. Em seguida será a vez da direita, com figuras de Rá e Amsu, depois os braços e finalmente os pés e as pernas, previamente friccionados com os óleos sagrados e flores de anem. Horus, no seu esplendor, adornará a perna esquerda, enquanto Anúbis velará na direita, e as cavidades do corpo serão preenchidas com diversas substâncias aromáticas, tais como mirra, de odor penetrante, usada na magia e na religião pelo menos durante quatro mil anos.
Um médico real vinha frequentemente observar o labor dos tarikbeutai, os embalsamadores. Herófilo sentava-se a um canto, transportado de alegria pela descoberta da máquina do corpo humano, a constituição do sistema nervoso, as artérias, os tendões, e tomava notas em silêncio. Formado no rigor das ciências exactas por Estratão de Lâmpsaco, discípulo de Aristóteles, Herófilo trazia consigo uma clepsidra da qual jamais se separava; fazia questão de nada escrever na sua Anatómica que primeiro não tivesse observado. Dizia-se que a malograda Arsínoe I dera à luz os dois filhos de Ptolomeu Filadelfo assistida por Herófilo, que lhe aplicara uma técnica de parto sem dor por ele descoberta. Entusiasmados com os conhecimentos demonstrados pelos embalsamadores, outros homens de saber vinham amiúde arrancar à morte os segredos da vida. Um deles era Erasístrato, que talvez por esta razão sabia como ninguém o modo de funcionar dos órgãos do corpo humano. Seria ele a operar o rei a um tumor que o atormentava, poupando-o às terríveis dores que se seguiriam ao adormecê-lo com um extracto de mandrágora. Os dois sábios ali se deleitavam em conjecturas, perdidos no tempo, na vaga sensação de que o seu acto de pensar os fazia de facto existir com os deuses. Reconheciam ambos o muito que deviam ao saber dos egípcios, não apenas em matéria de conhecimento e uso de plantas curativas, mas também no campo da anatomia. Não contente com a observação dos cadáveres, a Erasístrato o rei permitiria mesmo a dissecção de homens vivos, criminosos condenados à morte cedidos pelo monarca. A ética desta liberalidade régia iria todavia tornar-se objecto de acesa discussão em toda a cidade de Alexandria, mas não dera o médico provas da sua perspicácia e dedicação à causa real? Não descobrira e informara o rei do amor do jovem Antígono pela sogra Estratónice, conquistando com isto o favor de Ptolomeu?» In Maria Lucília Meleiro, A Rosa de Alexandria, tradução de João Lourenço, Grandes Narrativas nº 192, Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN 972-232-961-8.


Cortesia de EPresença/JDACT