A
ampulheta
«(…) Sentado na sua câmara, no
paço da Alcáçova, o velho centenário escrevera a carta para o superior do
Convento do Carmo, porém, enquanto desenhava as letras com elegância e esmero,
olhava com frequência para a ampulheta. Se havia algo que o fascinara
duradouramente durante a sua vida fora o sortilégio do tempo: por vezes
parecendo tão breve e tão fugaz, embora fosse demorado; outras vezes tão
aborrecido e custoso de passar, mesmo que não chegasse sequer a uma hora. O
tempo era uma coisa objectiva, palpável e experimentável, mas era também
pensamento, funcionava como um harmónio que se enchia e que se escoava. Olhando
para trás, os seus incríveis cento e um anos de vida pareciam uma eternidade,
mas ao mesmo tempo sentia-os apenas como uma breve experiência, e
acontecimentos passados havia décadas ainda soavam na sua memória e nos seus
sentidos como se tivessem ocorrido no dia anterior. Havia pouco, quase lhe
parecera sentir de novo a palmada dolorosa que Filipa lhe aplicara na nádega
nua. Por isso o fascinava o fio do tempo da ampulheta, sempre imóvel e sempre
em movimento. As ameias de Santa Catarina estavam envoltas num halo alaranjado e
uma criada diligente acendera as velas. Álvaro Ataíde não se apercebera
dos passos suaves de Ana Domingues, nem da chegada do Corredor, um perdigueiro malhado que se fora encostar ao dorminhoco
Pintado.
O fidalgo dormitava. A areia da
ampulheta começou a subir, e o fio do tempo trouxe consigo a sua memória. Álvaro
Ataíde tivera uma existência extraordinária: saboreava prazeres diversificados,
vira um mundo nunca antes suspeitado, cobrira-se de honra nos campos de batalha
e vencera a morte. Vira-a nos inúmeros combates em que participara; observara-a
na cara dos inimigos que trespassara sem piedade; lutara contra ela nas
tempestades que haviam sacudido as frágeis caravelas em que navegara;
pressentira-a na boca enorme dos lagartos gigantes de que fugira nos rios da
Guiné; receara-a nos gritos dos homens com cara de cão do Benim; julgara que o
tomaria pelo frio nos arredores de Antuérpia num gélido Inverno; enganara-a
quando sentira o seu corpo começar a decompor-se por acção da terrível lepra.
O fio do tempo continuava a
puxá-lo para trás, e Álvaro reviu a
cobra gigante que se erguera à altura da sua cara e que derrubara com a espada
que permanecia sobre a mesa na sua câmara; os peixes descomunais que tinham uma
bocarra enorme e que eram capazes de andar em terra com quatro patas, bem como
outros, igualmente bizarros, que pareciam ter asas e que, por vezes, aterravam
no convés. Em Santa Catarina, os tons alaranjados foram substituídos por um azul
cada vez mais escuro. O criado já devia ter vindo com a ceia, contudo, o amo
não o chamava e ele distraíra-se com o jogo dos dados.
Na
sua longa vida tivera pouca intimidade com mulheres; em contrapartida, fora
guerreiro afamado. Pelo seu espírito passou, rebolando pelo chão, a cabeça do
conde de Monsanto, tal como ele a vira aproximar-se dos seus pés durante os
combates pela conquista de Arzila, no ano de 1471. Por um momento, sentiu a brisa gélida que soprava quando
deslizava sobre os rios gelados da Flandres de mão dada com Hildegarda; depois,
voltou a estar envolvido pelo bafo quente e húmido dos trópicos. Vultos, quais
fantasmas, regressaram momentaneamente ao seu convívio: sorriu quando se viu de
novo perante Alonso de Cifuentes, um jogral que fazia rir quem ouvia as suas
canções; emocionava-se ao rever a expressão desesperada de Isabel no momento em
que as suas mãos se haviam despegado e ela fora levada por uma vaga no meio de
uma terrível tempestade; perturbou-se ao reencontrar o circunspecto abade de
Alcobaça negando-lhe a entrada na ordem cisterciense. Dom abade, não tenho
afeições carnais e gosto muito de rezar a Nosso Senhor, e de ler as Escrituras».
In
João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de
Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.
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