Sara
«Está escuro,
Sara, estás aqui, mas poderás não estar. Depende apenas de ti. Lembra-te de
quando era Verão e o teu pai te levava a passear pelas colinas de Alenquer.
Houve uma vez, na estrada, ao entardecer, que um lobo te apareceu à frente,
arreganhando os dentes afiados. Que ferocidade, a do seu olhar, as suas pupilas
muito escuras com um brilho quase irreal. O coração batia-te com violência e tiveste
medo, muito medo. A mesma angústia se apossa de ti quando fixas os olhos do inquisidor,
João Bragança, na Sala do Secreto. O teu coração revive aquela consumação de
outrora, face ao lobo. Nessa tarde, antes de soltares um grito de terror, o teu
pai veio por detrás e matou o lobo com o seu punhal. De seguida envolveu o teu
pequeno corpo com o seu. Ficaste a tremer durante muito tempo como se o vento
escaldante que soprava das colinas soprasse dentro de ti, varrendo todos os
espaços do pensamento. Só muito lentamente foste acalmando. Estavas segura nos
braços do teu pai. Talvez seja desse modo... Se a recordação desse momento, e
de tantos outros, penetrar na matéria da tua alma, conseguirás que esta cela
seja invadida pelas suas figuras e pela sua substância.
Não, não olhes
em teu redor. O que vês e ouves pode não estar à tua frente, mas numa outra
esfera onde estão fixadas não só as miragens do ouvido mas também as miragens
da vista. A frescura do ar livre inunda-te o rosto e respiras os cheiros da
manhã e não o ar húmido e putrefacto desta cela. Não, não sentes o frio. Pelo
contrário, o bafo nocturno dos lençóis e dos cobertores, o vapor do leite
aquecido que a tua ama te traz à cama, os carvões ainda quentes do fogo de
vésperas transmitem-te uma sensação de palpável conforto enquanto vais
perscrutando os delicados desenhos da tapeçaria do teu quarto de menina. O teu
vestido não se encontra desfeito em fiapos que mal te cobrem as vergonhas. Quem
te disse que os farrapos não podem engendrar por si mesmos a mais nobre das
vestimentas? Envergas um vestido elegante que, flutuando em pregas soltas, te
transmite a sensação de caminhares sobre ondas. É vestida com o maior esmero,
num traje talhado com os mais valiosos tecidos, que esperas que o teu marido
emirja das sombras com o nascer do dia. O próprio facto de João de Leão, teu
marido, já ter morrido não impede que a sua voz compareça para falar de novo
contigo, com aquelas frases grandes e ardentes que faziam parte do seu amor.
Essa é a única voz que deves ainda escutar, os sons mais puros alguma vez
encarnados por uma voz humana, sobretudo nas vezes em que o inquisidor te
ameaça na casa do Secreto, incitando-te a delatares ad fadem tormenti o que realmente só poderás inventar.
Nunca é para o inquisidor
que olhas, não é a sua voz cruel e melíflua que escutas, nem mesmo consegues
captar o imenso rugido de dor que te chega de todo o lado. De um lugar
abençoado, cuidadosamente isento de outros ruídos, escutas o doce vozear do teu
amado. As feridas e as escaras marcadas na tua carne pelas correntes podem ser
pulseiras de venal ostentação, e a dor intermitente que se crava nas tuas
pernas não passa de uma temporária fraqueza. Sabes que o dia começa a despontar
porque um grande ruído de ferragens soa por todo o lado à medida que o
carcereiro abre e fecha sucessivamente uma série de portas, mas também podias
afirmar que a noite se prolonga porque nunca vês mudar as colorações do céu.
Tens quinze palmos de comprido por doze de largura para poderes caminhar. Se te
sentares, as trevas penetram-te completamente porque a nesga de sol que
atravessa este calabouço terá de largura uma mão travessa e três palmos de
comprimento. Só de pé consegues que um raio de luz tremeluzente te toque no
peito. Por tudo isto, Sara, a claridade terá de irradiar de ti. Como se
estivesses a voar, sem esforço, com a lentidão de um sonho, derrubas espessas
paredes, convocando as recordações. Persegues os teus próprios passos ao longo
da vida como se a tua existência se movesse, seguindo uma órbita anterior que,
à semelhança das estrelas cadentes, palpita acima de toda a escuridão. O tempo
vai deixando de existir e as tuas visões poderão quebrar todas as grades e
todas as correntes.
Se usares apenas
os olhos de ver, Sara, sabes que estás quase a sucumbir e poderás tomar como
verdade todas as denúncias que sobre ti fizeram em depoimento à Mesa. Delatores
secretos terão demonstrado com precisas evidências que pertences à casta dos
marranos e que professas práticas judaizantes. Se tornares confessas as tuas
culpas, hão-de clamar por outras e acabarão por apelidar-te de diminuta. De seguida,
o teu acusador, João Bragança, irá
insistir em como és leal aos homens e desleal a Deus. Depois de te submeter ao
tormento, pedir-te-á, com muita caridade, que dês reais provas de como
assentaste na verdadeira crença. Vai intimar-te, com a brandura dos falsos, a
que abras o coração à reconciliação e, de seguida, em novas e prolongadas
sessões, forçar-te-á a denunciar todos aqueles que contigo terão caído na
apostasia. Sabes como as coisas são!
Vão querer tomar as tuas palavras com muita miudeza e exigir que declares
quanta parte têm da nação as pessoas que vais delatando. Reconhece, Sara, estás
com medo. O inquisidor que te interroga está convencido de que escapou aos
limites da sua condição humana e acredita piamente que as suas palavras são
reguladas pela semelhança que têm com as do seu Deus. Nos seus discursos
frenéticos vai citando parábolas bíblicas onde a invocação do suplício na
fogueira consiste numa pálida imagem dos suplícios eternos. Assim, ao matar sob
a forma mais bestial, mata convicto de que o faz sob a bênção divina. Tanto a
ira mais tenebrosa como a mais gentil das doçuras se consagram na sua palavrosa
eloquência, de tal modo confundidas e misturadas que só se conseguem separar no
momento em que a cabeça da vítima se oferece ao cutelo. Nunca te atreveste a
abrir a boca, pois, mais do que a intenção herética necessariamente implícita em
qualquer palavra, existe a possibilidade de fazeres denúncias ainda mais
perigosas». In Ana Cristina Silva, As Fogueiras da Inquisição, Grandes Narrativas,
nº 396, Editorial Presença, Lisboa, 2008. ISBN 978-972-233-939-1.
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