O Primeiro Voo do Falcão
«(…) Até mais do que
isso. Para dona Isabel de Urgel o mundo acabou pouco tempo depois, precisamente
seis anos depois da morte do sisudo e enigmático cunhado de Sagres, e dela
pouco mais se soube porque, em Setembro do mesmo ano, o rei Afonso outorgara
parte dos seus bens em terras e rendas, herança do Regente, ao filho, o
príncipe João. Dona Isabel, duquesa de Borgonha, defendeu os sobrinhos e
preparou-lhes um futuro risonho. Fez de Jaime cardeal que foi para Roma onde
morreu, parece que de morte natural, um ano depois da conquista de Alcácer
Ceguer. O jovem cardeal ainda participou no conclave que elegeu o cardeal
Picolomini papa. O arcebispo de Lisboa e bispo de Pafos morreu de tísica ou
então de tanto sacrificar o corpo para não ceder aos impulsos carnais... Era
ainda uma criança que os ódios e a política marcaram para sempre. O outro
irmão, esse, casou em Chipre com uma Lusignan. Por pouco rempo. João, ainda em 1417, no ano da trasladação do corpo da
tia dona Leonor de Aragão de Toledo para a Batalha, morreu envenenado pela
sogra. Dona Beatriz, casada com Adolfo de Clèves, não durará também muito
tempo. Por enquanto, à duquesa de Coimbra, que tremia sempre que se aproximava
um correio, restava-lhe apenas aquele filho idolatrado, Pedro, franzino e muito
belo, louro e branco como o pai, sem o perfil aquilino e a pele morena dela e
do avô, e que era o potencial herdeiro do trono de Aragão. Talvez tenham sido
esses os seus pensamentos quando a Portugal chegou a notícia da morte do rei
Afonso V de Aragão e Nápoles, sem descendência legítima, tendo deixado ao filho
bastardo, duque da Calábria, Nápoles, e Aragão a João II de Navarra. Por
enquanto tudo parecia calmo mas, na Catalunha, os nobres mexiam-se e os velhos
opositores aos de Aragão começavam a pactuar e a pensar de novo na Casa de
Urgel. A cristandade é, entretanto, alertada pelo novo papa Pio II, eleito após
a morte de Calisto III, para o perigo otomano. Organiza a Grande Cruzada contra
os Turcos, depois de escrever uma carra magnífica ao sultão Mahomet: … tu és, sem dúvida, o maior soberano do Mundo.
Apenas te falta uma coisa: o baptismo. Aceita um pouco de água e converter-te-ás
no senhor de todos estes pusilânimes que trazem coroas sagradas e se sentam em
tronos benzidos. Sê o meu novo Constantino: eu serei para ti o novo Silvestre.
Converte-te ao Cristianismo e juntos fundaremos a partir de Roma, a minha cidade,
e de Constantinopla, agora tua, uma nova soberania universal.
Esta carta, escrita
cerca de 1461, era mais que a
missiva do herdeiro de um Império ao chefe e senhor de outro. Era um sonho, o grande
sonho do Império que renasceu nos meus tempos, encheu a cabeça deste rei menino
que há pouco tempo nasceu, e encherá, até ao fim dos tempos, a mente e a alma
de muitos mais... Se o Turco não ligou ao papa, os reis e imperadores da
cristandade também não. A não ser o galante Afonso de Portugal e o
cavalheiresco Filipe da Borgonha. O papa pretendia reunir todos os chefes do
Ocidente numa monstruosa cruzada contra o Turco e reconquistar Constantinopla.
Marcou uma reunião em Mântua. Quando lá chegou estava só. Fora a resposta da
cristandade ao seu ilustre papa, o homem que, no Vaticano, manifesta a primeira
ideia política da missão imperial do papa e o sonho de reconstrução do velho
espírito imperial romano.
Para o rei de Portugal a
cruzada irá concretizar-se no Norte de África. Era apoiado pelo tio que lhe
instilara na alma a ideia e pelo irmão Fernando desejoso de cruzar armas com o
infiel e mostrar o seu valor guerreiro. Claro que essa política fora o preço da
morte do tio em Alfarrobeira, um dos preços... Pedro compreenderia a expansão
ao longo da Costa da Guiné, mas as cidades do Norte de África para quê?, se poucos
efectivos militares possuíamos de momento para robustecer a empresa. Pedro
quisera mesmo entregar Ceuta para resgatar o irmão mais novo, mas Henrique e a
opinião pública não aceitaram… Agora seria a vez de Alcácer Ceguer.
Nesse ano a epidemia de peste assolou Lisboa e Afonso parte para Setúbal,
de onde sairá a frota para o Norte de África. O velho Bragança saltou logo do
seu ninho de abutres, pronto à empresa. Ninguém lhe podia negar a valentia,
isso não! Mas, oitenta e sete anos e todo torcido, cheio de espigões nos ossos
das articulações que, nu, parecia um boneco de feira, que iria o pobre velho lá
fazer? Afonso convenceu-o a ficar, mas entrega-lhe o governo do Reino na sua
ausência. Os filhos do velho duque, os condes de Ourém e Arraiolos, acompanham o
rei, tal como os netos, Fernando e João». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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