O
cerco a Lima
«(…) A administração dos apetites
das suas hostes era uma prioridade de Estado não menos urgente do que debelar
os focos de resistência índia, de modo que enviou Almagro ao Cuzco com a missão
de governar o território enquanto ele se ocupava da fundação da nova cidade. Os
seus três enviados encontraram o local ideal no vale perto de Lima, onde
convergiam três territórios, habitados por dez mil yungas (índios das regiões costeiras). Encontraram o que
procuravam na margem do rio Rímac, situada no território do meio, perto da huaca
ou santuário do deus que dava o nome ao rio, que era o oráculo das gentes da
região. O local tinha água e dispunha de uma rede de regueiros para a
irrigação. As goiabas, os mamões, os fardos de produtos agrícolas e os terrenos
de plantio prometiam terrenos férteis para as suas sementeiras, apesar da
acentuada aridez de todo o litoral, e havia lenha com fartura. Os palácios dos
caciques, as suas sepulturas e as suas choupanas de adobe não constituíam
obstáculos ao afã fundador dos invasores. Rodeada de outeiros e pedreiras, Lima
prometia abundância de pedra e o seu porto natural permitiria a comunicação com
o mundo exterior. Só um inconveniente estorvava o caminho para a foz do Rímac. Para
onde irá o meu povo, se o senhor se instalar nestas terras?, protestou o chefe
Taulichusco, cacique do seu povo. Não temos outro sítio onde povoar a cidade,
respondeu Pizarro.
Assim, a 18 de Janeiro de 1535, estabeleceu a capital num recanto
insignificante do império, à lei da espada, e recorrendo a cem colonos dispostos
a tudo, com o que deixou, para sempre, as hierarquias regionais em pantanas. Quatro
semanas depois, embora a menina fosse ainda demasiado pequena para o perceber
com os seus próprios olhos, o repentino aumento da densidade nos seus pulmões
serranos deve ter-lhe indicado que algo tinha mudado na atmosfera que
respirava, bem como no seu destino. Pela mão de sua mãe, a princesa dona Inés
Huaylas, descera à planície, onde a esperavam o pai e um lar por terminar. O
Conquistador fizera-se acompanhar por doze mulheres espanholas na aventura da fundação
da nova capital, e a décima terceira, meio espanhola meio índia e, por isso
mesmo, simultaneamente vencedora e vencida, trazia consigo um orgulho de casta,
para além desta cabala inquietante, anunciadora de problemas. Que outra coisa
poderia indicar a presteza com que a criatura se juntara aos atarefados
organizadores da nova capital, que perturbava para sempre a lógica geográfica e
política do império do seu tio Atahualpa e do seu avô Huayna Cápac?
Pizarro traçou o quadrilátero da
cidade com a ponta da espada, dividindo-o como um tabuleiro de xadrez, com cada
quarteirão dividido em quatro solares. As ruas eram amplas, para permitirem a
passagem de cavalos e canhões. Os solares em torno da praça principal, que era
um antigo tambo ou depósito inca
situado na margem do rio, foram divididos pelos colonos a troco de galinhas. Como
ainda eram poucos, foram ocupando as quadras em redor, ficando muitos solares
livres, os quais foram entregues às mesmas pessoas para que neles plantassem
pomares e organizassem ranchos onde se alojariam os índios, que seriam servos
destes novos amos. Na sua maioria, os índios foram expulsos para os arredores e
ocuparam os terrenos de cultivo repartidos pelos novos senhores da cidade.
As casas começaram a ser
construídas em terracota, que fazia as vezes dos ladrilhos, madeira e colmo, e,
em pouco tempo, os fundadores encheram os pomares de árvores de fruto cujos
ramos, carregados de figos, marmelos e laranjas, tombaram por cima dos muros de
adobe. Como grande parte da terra foi gasta no fabrico deste material de
construção, a cidade foi erigida sobre cascalho, um tipo de solo tão pouco
denso que a simples passagem dos cavalos fazia estremecer Los Reyes
(nome oficial atribuído a Lima) com mais vigor que os esporádicos tremores de
terra. Os habitantes improvisaram fazendas e casas de campo nos arredores da
cidade e plantaram figueiras, bananeiras, romãzeiras, meloeiros, laranjeiras, legumes,
canaviais e olivais em torno do vale por nostalgia, mas também pelo ímpeto de
criar, ou recriar. As primeiras casas erguidas em redor da praça principal, em
cujo centro o Conquistador mandou colocar um pelourinho, cobriram-se de
esteiras feitas de junco e madeira tosca de mangue».
In
Álvaro Vargas Llosa, A Primeira Mestiça, 2004, tradução de Luís Coutinho, Saída
de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-503-4.
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