segunda-feira, 3 de agosto de 2015

As Pirâmides de Napoleão William Dietrich. «A arrogante medida do governo de descartar a cristandade fez com que semanas passassem a ter dez dias em vez de sete. A intenção dessa revisão era substituir o calendário papal por uma alternativa uniforme de doze meses de trinta dias»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O problema todo começou com a sorte nas cartas. Assim como com a decisão de me alistar no exército a caminho de  uma invasão maluca que parecia ser a melhor solução para a  enrascada em que me envolvi. Ganhei uma jóia e quase perdi minha vida; então, aprenda uma lição: jogar é um vício. Mas acredito que também seja algo sedutor, natural e parte da vida, como respirar. O próprio nascimento pode ser comparado a um lance de dados, uma mera questão de sorte para definir se um bebé será um servo e o outro nasça para ser rei. Na onda da Revolução Francesa, os riscos tinham simplesmente aumentado demais, com advogados gananciosos ditando o ritmo e o pobre rei Luís perdendo a cabeça. Durante o Reinado do Terror, o fio da guilhotina fazia da existência em si uma questão de pura sorte. Então, com a morte de Robespierre, veio um alívio insano e casais felizes dançavam sobre os túmulos do cemitério de Saint Sulpice ao som de um novo passo alemão chamado valsa. Agora, mais de três anos depois, a nação mergulhou em guerras, na corrupção e na constante busca pelo prazer. As fardas marrons sem vida deram lugar a uniformes brilhantes e modestos colarinhos, enquanto mansões saqueadas passaram a servir como salões e bordéis para ávidos intelectuais. Se o conceito de nobreza ainda era repugnado, a riqueza revolucionária criava uma nova aristocracia. Uma elite de auto-proclamadas mulheres maravilhosas desfilava pelas ruas de Paris para ostentar sua luxúria insolente em meio à deplorável condição pública. Os bailes eram frequentados por donzelas vestindo fitas vermelhas no pescoço, zombando da guilhotina. A cidade contava com quatro mil casas de jogo, algumas tão simples que os jogadores levavam seus próprios bancos dobráveis, e outras tão opulentas que os aperitivos eram servidos em bandejas dignas das catedrais, além de possuírem banheiro interno.
Meus colegas norte-americanos consideravam ambas as práticas igualmente escandalosas. Os dados e as cartas não param: creps, vinte e um, faraó, biribi, e por aí vai. Enquanto isso, a inflacção era calamitosa e ervas daninhas cresciam nos jardins abandonados de Versailles. Para completar, exércitos marchavam pelas fronteiras da França. Vivendo tudo isso, arriscar uma boa quantia e torcer por um nove em Chemin de Fer parecia tão natural e tolo quanto a própria vida. Como eu poderia saber que aquela aposta me levaria a Bonaparte? Se eu fosse um pouco supersticioso, poderia ter levado em conta que a data, 13 de Abril de 1793, era uma sexta-feira. Mas era Primavera na Paris revolucionária, o que significava que, pelo novo calendário instituído pelo Diretório, era o vigésimo quarto dia do mês de Germinal no Ano Seis e que o próximo dia de descanso ainda distava seis dias, e não dois.
Nenhuma reforma havia sido tão inútil quanto aquela. A arrogante medida do governo de descartar a cristandade fez com que semanas passassem a ter dez dias em vez de sete. A intenção dessa revisão era substituir o calendário papal por uma alternativa uniforme de doze meses de trinta dias, cada um com base num antigo sistema egípcio. Até edições da Bíblia foram desmontadas para se abastecer a produção de cartuchos de papel para armas nos dias sombrios de mil setecentos e noventa e três, enquanto a semana bíblica fora guilhotinada para dar lugar a meses divididos em três décadas de dez dias cada, com o ano começando no equinócio de Outono, e a inclusão de cinco ou seis feriados para balancear o idealismo com a órbita solar. Não satisfeito com a reformulação do calendário, o governo introduziu um novo sistema métrico para pesos e medidas. Existiam ainda propostas para uma nova duração do dia com exactos cem mil segundos marcados no relógio. Razão, razão! E o resultado foi que todos nós, incluindo eu, cientista amador, investigador da eletricidade, empreendedor, franco-atirador e idealista democrático, não sabíamos mais quando eram os domingos. O novo calendário era um tipo de ideia lógica imposta por pessoas inteligentes, mas que ignoram completamente o hábito, as emoções e a natureza humana.
Tudo isso, com certeza, apontava para o fracasso da Revolução. Parecia um profeta? Para ser honesto, ainda não estava habituado a pensar na opinião pública de modo calculista. Eu aprenderia isso com Napoleão. Pois é, meu pensamento estava dedicado à contagem das cartas no jogo. Se eu fosse um homem da natureza, poderia ter deixado os salões para me deliciar com os primeiros aromas do ano e passear entre as folhas verdes, e, quem sabe, me dedicado a contemplar as senhoritas no jardim de Tuileries ou, pelo menos, as prostitutas de Bois de Boulogne. Eu escolhi as mesas de jogo de Paris, aquela cidade gloriosa e suja com seu perfume, poluição, monumentos e lama. Minha Primavera era à luz de vela; minhas flores eram cortesãs, cujas roupas eram tão apertadas que seus seios pareciam querer escapar desesperadamente; e meus companheiros formavam a nova democracia de políticos e soldados, nobres sem poder e comerciantes recentemente enriquecidos, mas, todos, com uma coisa em comum: cidadãos iguais. Eu, Ethan Gage, era o representante da luta norte-americana pela democracia nos salões e mesas de jogos». In William Dietrich, As Pirâmides de Napoleão, 2007, Grandes Narrativas, nº 490, Editorial Presença, 2011, ISBN 978-972-234-450-0.
                         
Cortesia EPresença/JDACT