sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O Cavaleiro de Olivença João Paulo O Costa. «Isso é um boneco… Que é um boneco de pano vejo eu. Mas tem um buraco em baixo. É porque este boneco pode ser usado numa representação, em palco apropriado. Dolores observava atentamente o boneco. Então isto serve para uma representação?»

jdact

O amigo da rainha
«(…) Despachadas as roupas, havia ainda alguns objectos para arrumar; credo, amiga. Esta parte do palácio era triste com a rainha aqui encerrada, as janelas sempre fechadas e a pobrezinha alumiada por velas, mas sem ela torna-se assustadora. Vamos acabar depressa este serviço. Ai, Dolores, a mim também me custa este trabalho. Também tens medo de fantasmas? Não, mulher. Depois de tantos anos junto de Sua Alteza, não sei o que vai ser a minha vida. Sempre vivi para a servir. E agora, enquanto estamos a guardar todos os seus pertences, é que sinto verdadeiramente que ela morreu. É como se eu própria a estivesse a matar. Valha-me a Virgem Santíssima! Aldonça, até me deste um arrepio. Vamos acabar isto. Olha, vou dar-te aqueles livros de orações que estão ali em cima. Dolores tomou vários livros das suas mãos, mas um caiu e ela baixou-se para o apanhar. Viu então, num canto perto da cama da falecida, um objecto estranho e pegou-lhe. Sacudiu-o e uma nuvem de pó espalhou-se pelo ar. Que coisa é esta? Aldonça teve uma ligeira comoção. Era um boneco antigo de que a rainha só se esquecera nos últimos meses de vida, talvez porque tivesse ficado preso no colchão. Tinha-lhe sido oferecido havia mais de quarenta anos, e ela sempre o conservara entre os seus pertences mais queridos, e sempre o escondera quando Carlos ou seu neto Filipe a haviam visitado; guardava-o mesmo, sempre que recebia na sua câmara o marquês de Denia, o governador de Tordesilhas e seu carcereiro.
Isso é um boneco… Que é um boneco de pano vejo eu. Mas tem um buraco em baixo. É porque este boneco pode ser usado numa representação, em palco apropriado. Dolores observava atentamente o boneco. Então isto serve para uma representação? Lembro-me agora de ter visto uns bonecos assim numa festa na minha aldeia, quando era menina. O que não percebo é o que este boneco representa. É um animal? Sim, minha amiga, é uma girafa. O que é isso? Nunca vi nada parecido. Ó Dolores, a girafa é um animal que existe nas terras da Guiné, de onde vêm os negros. E tem assim um pescoço comprido, como esta? Sim, é uma alimária altíssima. E porque tinha a nossa rainha este boneco entre os seus pertences mais queridos?
Olha, Dolores, tu só entraste ao seu serviço há cinco anos, mas eu já a servi nos Países Baixos, quando ela era simplesmente a duquesa da Borgonha. Estive com ela mais de cinquenta anos. Pois este boneco foi-lhe dado por seu último grande amigo. E quem era esse seu amigo? O olhar: de Aldonça buscou o horizonte que se estendia para lá da janela. Era um cavaleiro português. Galante, grande lutador. Conheceu nossa rainha em Bruxelas, foi amigo do rei Filipe e depois visitou-a a furto, aqui em Tordesilhas, enquanto foi vivo. Eram apaixonados?» In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.

Cortesia de CL/TDebates/JDACT