«Quase nada sei sobre Portugal.
Apenas tenho ante os meus olhos uma fotografia que vi algures numa revista: as
grades muito negras de uma janela prisional, um perfil de cabelos grisalhos, rugas
e o desespero estampado nuns enormes olhos femininos. Tudo isto, em conjunto, tem
para mim o sentido concreto da palavra Portugal. (Em russo dizem Portugália). Dentro
de instantes entrará um homem sobre o qual, tão-pouco, quase nada sei além de que
lhe chamam Álvaro Cunhal, que é secretário-geral do Partido Comunista Português
e que o seu nome está aureolado por alguma coisa de lendário. Subitamente, sinto-me
perturbada. Anunciam-me a sua chegada. Espero. Os olhos sofredores da anciã que
vi na revista, fitam-me. Parece-me, por um instante, que estou do outro lado, onde
há liberdade. A mulher arrima-se às grades e, agora, grita, asfixia-se de ira e
de dor... A porta abre-se. Entra um homem. Ao apertar fortemente a minha mão, diz-me:
Saúde, camarada... Marmóreo, de cabelo branco, rosto viril, afectuoso, de olhar
tranquilo. Nota-se calma no mover da cabeça, no movimento das mãos e na maneira
como ele pega no cigarro que está fumando. Na sala também agora há calma, mas eu
estou espectante: há muito tempo que conheço este homem. Vi-o em outros como ele;
vi-o naqueles que com as suas mãos fazem a vida. Falamos sobre múltiplas e diversas
coisas, por vezes sem sequência aparente; falamos como velhos camaradas para as
quais bastam, frequentemente, duas palavras para que, sem mais explicações, reviva
na nossa mente e só veja um quadro de cores conhecidas, um acontecimento ou
ainda um rosto humano. Vejo como ensombrecem ou, pelo contrário, como cintilam os
seus olhos, ouço a música da sua voz ora suave, ora brusca, enérgica, precisa,
quando faz o balanço de um pensamento meditado, de há muito. Olho para ele quando
se cala por um momento antes de responder a uma pergunta. Parece que nesse momento,
na sua cabeça se imprime, instantaneamente, a reprodução de algo, e depois tal como
na fotografia vejo nitidamente a sua pergunta e o que está por detrás dela, e também
a resposta na qual nada ficou por dizer. Primeiramente, vejo apenas o homem admirável
cuja presença, a voz, apenas, me dá um impulso, um torvelinho de sensações». In
Francisco Ferreira, Chico da CUF, Álvaro Cunhal, Herói Soviético, edição do
autor, distribuição d’O Século, 1976.
Cortesia d’O Século/JDACT