«A coragem que vence o medo
tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa
interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a
primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma». In Fernando Pessoa
«(…) Nestas
dezenas e dezenas de milhares de lugarejos, aldeias, vilas e cidades, o que não
falta são pessoas que jurariam ser causa e causas, tanto do ladrar dos cães
como do mais que virá, porque bateram com uma porta, ou cortaram uma unha, ou
arrancaram um fruto, ou afastaram uma cortina, ou acenderam um cigarro, ou morreram,
ou, não as mesmas, nasceram, hipóteses estas, de morte e nascimento, que mais difíceis
seriam de admitir, tendo em conta que teríamos de ser nós a propô-las, pois
quem nasce não vem a falar da barriga da mãe e quem morre não fala depois de
ter entrado na barriga da terra. E nem adianta acrescentar que a qualquer um
sobejam razões para se julgar causa dos efeitos todos, estes de que viemos
falando e mais os que são nossa parte exclusiva para o funcionamento do mundo,
o que eu muito gostaria de saber é como ele será quando não houver homens e os
efeitos que só eles causam, o melhor é nem pensar em tal imensidão, que faz
tonturas, ora, bastará que sobrevivam uns animaizitos, uns insectos, e mundos
haverá, o da formiga, o da cigarra, não afastarão cortinas, não se olharão num
espelho, e isso que tem, afinal a única grande verdade é que o mundo não pode
ser morto.
Diria Pedro Orce, se
tanto ousasse, que a causa de tremer a terra foi ter batido com os pés no chão
quando se levantou da cadeira, forte presunção a sua, se não nossa, que levianamente
estamos duvidando, se cada pessoa deixa no mundo ao menos um sinal, este
poderia ser o de Pedro Orce, por isso declara, Pus os pés no chão e a terra
tremeu. Extraordinário abalo foi ele, que ninguém deu mostras de o ter sentido,
e mesmo agora, passados dois minutos, quando na praia a vaga já refluiu e
Joaquim Sassa diz consigo mesmo, Se eu for contar chamam-me mentiroso, a terra vibra
como continua a vibrar a corda que já deixou de ouvir-se, sente-a Pedro Orce
nas solas dos pés, continua a senti-la quando sai da farmácia para a rua, e
ninguém ali dá por nada, é como estar a mirar uma estrela, dizer, Que linda luz,
que formoso astro, e não poder saber que ela se apagou no meio da frase, hão-de
os filhos e os netos repetir as palavras, pobres deles, falam do que está morto
e chamam-lhe vivo, não é só na ciência astronómica que acontece esse engano.
Aqui é ao contrário, juraria toda a gente que a terra está firme e só Pedro
Orce afirmaria que ela treme, ainda bem que se calou, e não correu espavorido,
aliás as paredes não oscilam, os candeeiros suspensos estão como fio-de-prumo,
e os passarinhos da gaiola, que costumam ser os primeiros a dar o alarme,
dormem tranquilos no poleiro, com a cabeça debaixo da asa, a agulha do
sismógrafo traçou e continua a traçar uma linha recta horizontal no papel milimétrico.
Na manhã do dia seguinte, um homem atravessava uma planície
inculta, de mato e ervaçais alagadiços, ia por carreiros e caminhos entre
árvores, altas como o nome que lhes foi dado, choupos e freixos chamadas, e
moitas de tamargas, com o seu cheiro africano, este homem não poderia ter
escolhido maior solidão e mais subido céu, e por cima dele, voando com inaudito
estrépito, acompanhava-o um bando de estorninhos, tantos que faziam uma nuvem escura
e enorme, como de tempestade. Quando ele parava, os estorninhos ficavam a voar
em círculo ou desciam fragorosamente sobre uma árvore, desapareciam entre os
ramos, e a folhagem toda estremecia, a copa ressoava de sons ásperos, violentos,
parecia que dentro dela se travava ferocíssima batalha. Recomeçava a andar José
Anaiço, era este o seu nome, e os estorninhos levantavam-se de rompão, todos ao
mesmo tempo, vruuuuuuuuuu. Se, não sabendo quem este homem é, nos puséssemos a
querer adivinhar, diríamos que talvez seja passarinheiro de ofício ou, como a
serpente, tem poder de encanto e habilidades atractivas, quando o certo é estar
José Anaiço tão duvidoso como nós sobre as causas do alado festival, Que
quererão de mim estas criaturas, não estranhemos a palavra desusada, há dias em
que as comuns não apetecem». In
José Saramago, A Jangada de Pedra, Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição,
Reunidos, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-210-289-6.
Cortesia de
Caminho/JDACT