«(…)
Estou a esforçar-me por me aproximar dos factos... Na sua última carta,
Baltasar escrevia-me: Penso em si frequentemente e com um certo humor macabro.
Você isolou-se nessa ilha, com, segundo pensa, todos os dados sobre as nossas
pessoas e existências. Vai certamente julgar-nos no papel à maneira dos escritores.
Gostaria de ver o resultado. Deve ficar muito distante da verdade: quero dizer, daquelas verdades que eu lhe podia contar a
nosso respeito, e porventura até a seu respeito. Ou das verdades que Clea
poderia contar (encontra-se em Paris e deixou de me escrever). Vejo-o
sabiamente debruçado sobre o Moeurs,
os diários íntimos de Justine, Nessim, etc, imaginando que a verdade se
encontra nessas páginas. Erro, enorme erro! Um diário é a última fonte a que o
historiador deve recorrer para conhecer o seu autor. Ninguém se atreve a ser
sincero no papel: pelo menos quando se trata de amor. Sabe quem era o homem a
quem Justine amava verdadeiramente? Pensa que esse homem era você, não é
verdade? Confesse!
Por
única resposta enviei-lhe o enorme maço de papel que lentamente se tinha ido
dilatando sob a minha pena preguiçosa e a que tinha dado um pouco abusivamente
por título o nome de Justine, embora Cahiers
tivesse servido perfeitamente. Seis meses decorreram, um silêncio reconfortante
porque me segredava ter o meu crítico ficado satisfeito, confundido. Não posso
afirmar que tenha esquecido a cidade mas a verdade é que deixei adormecer a sua
imagem. Contudo, é claro, ela continuava lá, e continuaria, suspensa no meu
espírito como a miragem que tantas vezes deslumbra os viandantes. Pursewarden
descreveu o fenómeno nos seguintes termos: Encontrávamo-nos
ainda a duas ou três horas de distância do ponto onde se começaria a avistar
terra quando subitamente o meu companheiro gritou qualquer coisa e apontou para
o horizonte. Vimos, invertida no céu, uma imagem em tamanho natural da cidade,
luminosa e trémula, como pintada em seda poeirenta, mas rica em pormenores; a
minha memória reconstituía todos os locais, o Palácio Ras El Tin, a Mesquita de
Nebi Daniel, e assim por diante; o conjunto formava uma alucinante composição
pintada com pinceladas de orvalho; ali ficou no céu por tempo considerável,
talvez vinte e cinco minutos, antes de se dissolver na neblina do horizonte.
Uma hora depois apareceu a cidade real, um pontinho que se dilatou até às
dimensões da sua imagem.
Os
dois ou três Invernos que passámos nesta ilha foram solitários, invernos
austeros e ventosos e verões escaldantes. Felizmente a criança ainda é
demasiado nova para sentir como eu a necessidade de livros e de contactos
humanos. É feliz e activa. Agora na Primavera chegam as grandes calmarias, os
dias de premonição, sem perfumes, sem marés. O mar doma-se a si próprio e fica
atento. Breve se ouvirá o zangarrear das cigarras acompanhar a flauta dos
pastores no alto dos rochedos. Os nossos únicos companheiros são a tartaruga
desajeitada e o lagarto. Devo explicar que o nosso único visitante regular do
mundo exterior é o paquete de Esmirna que, uma vez por semana, dobra a ponta de
terra a caminho do sul, sempre à mesma hora e à mesma velocidade, pouco depois
do poente. No Inverno os temporais tornam-no invisível, mas agora sento-me à
espera dele. Para começar ouve-se apenas o pulsar desmaiado dos motores. Depois
a criatura desliza e aparece a dobrar o cabo, rasgando no mar a sua linha de
espuma sedosa, brilhando na obscuridade da noite diáfana do Egeu, condensada,
mas sem contornos, como uma nuvem de pirilampos movendo-se à flor do mar.
Avança depressa, e desaparece demasiado depressa para além da outra ponta da
enseada, deixando atrás de si um fragmento de qualquer canção popular, ou a
casca de uma tangerina que no dia seguinte encontrarei arrojada à praia onde
costumo ir tomar banho com a criança». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria,
1958, Baltazar, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom
Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.
Cortesia
de PdQuixote/JDACT