O
amigo da rainha
«(…) No dia seguinte à festa da
Páscoa, uma mulher idosa, um pouco curvada, de passo firme mas pausado e com roupas que denunciavam sua
riqueza e fidalguia, caminhava pela Rua Nova. Andava em seu passeio habitual e
fora visitar a filha de um de seus pastores que acabara de dar à luz. Quando
chegou à praça olhou instintivamente para a torre à direita, onde um relógio
anunciava a marcha do tempo. É um dos
mais antigos de nosso reino, explicara-lhe um dia o bispo Henrique, bispo
de Ceuta. Sabede, dona Antónia, que foi
ali posto no tempo d’el-rei Afonso, o quinto. Ainda era cedo e virou à
esquerda, dirigindo-se para a igreja de Santa Maria Madalena. À porta estava o
sacristão.
Então, Jaime, por quem dobram os
sinos? Ainda não sabe, dona Antónia? Pois chegou notícia que a rainha Joana, a
mãe do imperador e de Sua Alteza a rainha dona Catarina, foi chamada por Deus Nosso
Senhor. Dona Antónia sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Acabara de ser
agitada pelo passado, por memórias antigas, esquecidas no dia a dia, mas que
afinal estavam vivas em seu espírito e que só esperavam uma oportunidade para
voltar a preencher seus pensamentos. Acenou para o sacristão e interrompeu a
caminhada. Dona Antónia, não ides à igreja? Está prestes à começar a recitação
das vésperas.
Era para ir, meu filho, mas este
frio que nunca mais passa está a incomodar-me e tenho de regressar a casa.
Voltarei prestes. Enquanto caminhava viu um grupo de rapazes que saltavam ao
eixo. Eh, moços! Vinde cá. Dona Antónia Sousa era uma das personagens mais importantes
da vila. Fora senhora de um morgadio, para as bandas de Moura, que cedera a seu
enteado e em troca ficara com os bens do falecido marido. Tinha casa que
habitava em Olivença, e várias propriedades em torno da vila que lhe rendiam
bom dinheiro, a que juntava uns padrões de tença que herdara do pai, mais outra
que a Coroa lhe pagava por respeito aos serviços extraordinários do seu esposo.
Quando chamava alguém da terra logo era atendida, e a rapaziada acercou-se
prestes. Ide chamar a Matilde e dizer-lhe para vir a minha casa. Os rapazes olharam
uns para os outros embaraçados. Senhora dona Antónia, dizem que a Matilde é uma
bruxa.
Mas que rapazes tão tolos. Deixai-vos
de imaginações. Matilde em sua velhice tem modos muito próprios, porque sempre gostou
da natureza e porque vivendo sozinha não tem quem lhe corrija as bizarrias. Mas
asseguro-vos que é uma fiel servidora da Coroa e da Igreja..., e podeis dizer
isso a vossos pais. Agora ide chamá-la. Tenho um bolo acabado de fazer na minha
cozinha. Passai por lá depois». In João Paulo Oliveira Costa, Círculo de
Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.
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