sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. «… a majestosa palmeira o céu severo como a lápide de um sepulcro, as trevas da noite a acentuarem no horizonte não sei que imagens sinistras do cadafalso. Ao clarão dos relâmpagos só se vê o Mandovi…»

jdact e wikipedia

Goa
«(…) Abrem-se depois as bocas do céu, e a água cai em jorros como do alto de uma cascata, fria e compassada, como as torrentes diluvianas: eu amava no Oriente as noites tempestuosas, as noites hibernais de pragas cavernosas em que parece ser uma taberna o céu, as noites em que o mar beijado do escarcéu treme, como num leito uma mulher esquecida; em que a chuva que cai, doida, descabelada, com um tinir de grilhões, bate na vidraça e faz crer que pelo ar ovento forçado passa; em que a lua não rompe a atmosfera sombria e jaz como o afogado imerso na água fria; em que o firmamento é triste e temeroso; porque o vento apagou com um sopro as estrelas, aquelas noites tão tragicamente belas.
A natureza oriental tem alguma coisa do carácter humano: tão depressa lhe coram as faces e esbofeteia a terra, como logo cai em torpor. Apaixonada, por assim dizer, nervosa, revolta-se em ímpetos de cólera para logo cair numa modorra, tanto mais feminina, quanto varonil foi a agitação. As primeiras manhãs de Inverno são de uma harmonia e de uma tinta tão suaves como a face de uma virgem. A chuva, fez brotar de um salto arbustos aromáticos que juncam os palmares; os pardais volitam pelos beirais das casas a construírem o seu ninho; as ruas e os tectos ostentem os seus verdes tapetes de relva; o sol tem a luz mansa e opaca da lua de Inverno, e o céu desbotado conserva a homogeneidade das águas de um lago, frias e esverdeadas. Aparece a nave de um templo coada pela luz mística das vidraças góticas. A terra é uma mãe cheia de amor, de risos e de encantos. O Inverno é a Primavera da Índia: ... aonde o duro inverno os campos reverdece alegremente.
A estes indícios da estação chuvosa começam os primeiros trabalhos da lavoura, porque não tarda o rigoroso Inverno, não tardam os dias diluvianos de Junho e Julho. A Ponte de Linhares, ladeada pelo Mandovi e pelos vastos arrozais de Santa Cruz e Mercês, oferece-nos um panorama deslumbrante nessas noites de Inverno. Se não existe Deus, Deus é tudo aquilo: a majestosa palmeira o céu severo como a lápide de um sepulcro, as trevas da noite a acentuarem no horizonte não sei que imagens sinistras do cadafalso. Ao clarão dos relâmpagos só se vê o Mandovi que, qual réstia de luz, se torce rápido e turvo entre Pangim e a outra banda; miríades de insectos açoitam-nos o rosto e vão, coitados, atraídos pela claridade, morrer nos candeeiros que ardem dentro das casas; as rãs coaxam nos charcos, nos poços, fazendo um coro de agreste música. Sobre as paredes, na relva das estradas e dos tectos cintilam os pirilampos, como se a terra fosse um manto cravejado de pedrarias». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!

Cortesia de Ésquilo/JDACT