Goa
«(…) Abrem-se depois as bocas do céu, e a água cai em jorros como do
alto de uma cascata, fria e compassada, como as torrentes diluvianas: eu amava
no Oriente as noites tempestuosas, as noites hibernais de pragas cavernosas em
que parece ser uma taberna o céu, as noites em que o mar beijado do escarcéu treme,
como num leito uma mulher esquecida; em que a chuva que cai, doida,
descabelada, com um tinir de grilhões, bate na vidraça e faz crer que pelo ar
ovento forçado passa; em que a lua não rompe a atmosfera sombria e jaz como o
afogado imerso na água fria; em que o firmamento é triste e temeroso; porque o
vento apagou com um sopro as estrelas, aquelas noites tão tragicamente belas.
A natureza oriental tem alguma coisa do carácter humano: tão depressa
lhe coram as faces e esbofeteia a terra, como logo cai em torpor. Apaixonada,
por assim dizer, nervosa, revolta-se em ímpetos de cólera para logo cair numa
modorra, tanto mais feminina, quanto varonil foi a agitação. As primeiras manhãs
de Inverno são de uma harmonia e de uma tinta tão suaves como a face de uma virgem.
A chuva, fez brotar de um salto arbustos aromáticos que juncam os palmares; os
pardais volitam pelos beirais das casas a construírem o seu ninho; as ruas e os
tectos ostentem os seus verdes tapetes de relva; o sol tem a luz mansa e opaca da
lua de Inverno, e o céu desbotado conserva a homogeneidade das águas de um lago,
frias e esverdeadas. Aparece a nave de um templo coada pela luz mística das vidraças
góticas. A terra é uma mãe cheia de amor, de risos e de encantos. O Inverno é a
Primavera da Índia: ... aonde o duro inverno
os campos reverdece alegremente.
A estes indícios da estação chuvosa começam os
primeiros trabalhos da lavoura, porque não tarda o rigoroso Inverno, não tardam
os dias diluvianos de Junho e Julho. A Ponte de Linhares, ladeada pelo Mandovi
e pelos vastos arrozais de Santa Cruz e Mercês, oferece-nos um panorama deslumbrante
nessas noites de Inverno. Se não existe Deus, Deus é tudo aquilo: a majestosa palmeira o céu severo como a
lápide de um sepulcro, as trevas da noite a acentuarem no horizonte não sei que
imagens sinistras do cadafalso. Ao clarão dos relâmpagos só se vê o
Mandovi que, qual réstia de luz, se torce rápido e turvo entre Pangim e a outra
banda; miríades de insectos açoitam-nos o rosto e vão, coitados, atraídos pela claridade,
morrer nos candeeiros que ardem dentro das casas; as rãs coaxam nos charcos,
nos poços, fazendo um coro de agreste música. Sobre as paredes, na relva das
estradas e dos tectos cintilam os pirilampos, como se a terra fosse um manto
cravejado de pedrarias». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna,
Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN
978-989-719-001-8.
Para Ofélia e Álvaro José, que
estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT